Hermenêutica, Cânones Bíblicos, Ideologia e o Retorno às Coisas Mesmas.
À memória das vítimas dos naufrágios no Pará e na Bahia.
Deve-se observar que a Hermenêutica
surgiu originalmente como uma disciplina dedicada ao estudo dos princípios da
interpretação bíblica. Sua primeira finalidade, bem como dos métodos exegéticos
empregados na interpretação, tem sido a descoberta do significado dos textos
sagrados e sua aplicação ao contexto dos ouvintes através da História. Alguns
textos são de interpretação simples, outros demandam um grande esforço
exegético, com o auxílio de conhecimentos das áreas de História, Arqueologia,
Antropologia, Sociologia, Política, Filosofia, História das Religiões e outras
áreas do conhecimento.
Uma primeira questão que se deve
colocar em relação à Hermenêutica Bíblica é a que diz respeito à definição do
Cânon bíblico e dos livros que foram selecionados para compô-lo. Para ficar
apenas nos principais em nosso contexto cultural e histórico, lembremos que há
uma Bíblia Hebraica, com 39 livros; uma Bíblia Católica, com 74 livros, sendo
47 deles no Antigo Testamento e 27 no Novo Testamento e uma Bíblia Protestante,
com 66 livros, sendo 39 deles no Antigo Testamento e 27 no Novo Testamento
(estes 27 são os mesmos do cânon católico).
A questão do cânon incomodou também a Lutero, o qual, de
acordo com Karl H. Schelkle, “embora conservasse como Sagrada
Escritura os 27 livros tradicionais do Novo Testamento, contudo, começou uma
apreciação crítica, julgando-os sob o ponto de vista de ‘se ocuparem de
Cristo’. Conforme isso, escritos como a Epístola aos Hebreus, a Epístola de S.
Tiago, a Epístola de S. Judas e o Apocalipse de São João pareciam-lhe ser de
menor valor. Por isso, colocou-os no fim do seu Novo Testamento”.[1]
Há diversas questões hermenêuticas que se colocam em
relação à definição de cada Cânon. Os primeiros cristãos tinham como Bíblia ou
Escritura os livros do Antigo Testamento, ou seja, a Bíblia Hebraica, e faziam
a sua leitura em relação a Cristo, a fim de confirmar, com base em diversos
textos, que ele era o Messias prometido, de tal modo que as primeiras
comunidades cristãs, lendo o AT em relação a Cristo, consideravam-se como o
novo Israel. Paulo afirma na Epístola aos Gálatas: “Paz e misericórdia sejam
sobre eles e sobre o Israel de Deus” (Gl 6.16). Nesse sentido, Justino afirmou
no século II: “Nós somos aquele povo que Deus outrora prometeu a Abraão”.[2] Ele está
de acordo com os Evangelhos em relação à leitura do Antigo testamento sobre
Cristo, afirmando categoricamente que “nos livros dos Profetas, de fato,
encontramos Jesus, o nosso Cristo”.[3]
A leitura do AT era feita com a
adoção de dois métodos de interpretação: o alegórico e o tipológico. O primeiro
já estava presente no próprio Judaísmo, mas os cristãos encontraram no AT
vários textos que, em sua interpretação, referiam-se a Cristo. O próprio Cristo
se valeu com frequência das alegorias. Um exemplo lapidar pode ser
verificado na narrativa, presente nos três Evangelhos sinóticos, sobre o
semeador, na qual a atenção maior é dada aos tipos de solo que receberam a
semente, isto é, aos ouvintes e às suas diferentes reações diante da
proclamação do Reino de Deus.
As alegorias sobre a natureza são frequentes no AT.
Há uma que é citada por Hobbes na obra Do
Cidadão, quando o filósofo, para corroborar seu argumento sobre os
problemas advindos da falta de soberania e dos perigos da guerra civil, recorre
ao Livro de Juízes, no qual se encontra uma narrativa sobre o desinteresse
dos israelitas pelo exercício do governo e as consequências disso para a
sociedade. O autor do texto bíblico usa uma símile sobre as árvores que, em
busca de um rei, disseram à oliveira: “Vem tu e reina sobre nós”. Como a
oliveira se recusou, as árvores procuraram pela figueira e pela videira e lhes
ofereceram o reino, mas depois de sua recusa também, diz o texto que “todas as
árvores disseram ao espinheiro: vem tu e reina sobre nós”.[4] Ao que o
espinheiro aceitou, dizendo: “Se deveras me ungis rei sobre vós, vinde e
refugiai-vos debaixo de minha sombra; mas, se não, saia fogo do espinheiro que
consuma os cedros do Líbano”.[5]
Essa narrativa do Livro de Juízes,
na hermenêutica hobbesiana, por um lado, apresenta a origem do poder na
comunidade, e por outro, o que é o principal para o filósofo, adverte sobre os
perigos da desobediência ao poder soberano e de sua principal e mais temível
consequência, a guerra civil, a qual Hobbes compara ao espinheiro mencionado na
parábola, afirmando que, ou se aceita a soberania absoluta, ou “estaremos
preferindo ser consumidos pelo fogo da guerra civil”. [6]
O recurso à alegoria foi utilizado
também pelo profeta Natã ao advertir Davi sobre seu adultério com Bate-Seba e a
ordem dada sobre a execução de seu marido, Urias. Natan contou ao
rei uma história nestes termos: “Havia numa cidade dois homens, um rico e
outro pobre. O rico tinha rebanhos e manadas em grande número; mas o pobre
não tinha coisa alguma, senão uma pequena cordeira que comprara e criara; ela
crescera em companhia dele e de seus filhos; do seu bocado comia, do seu copo
bebia, e dormia em seu regaço; e ele a tinha como filha. Chegou um
viajante à casa do rico; e este, não querendo tomar das suas ovelhas e do seu
gado para guisar para o viajante que viera a ele, tomou a cordeira do pobre e a
preparou para o seu hóspede”.
Após essas palavras do profeta, “a
ira de Davi se acendeu em grande maneira contra aquele homem; e disse a Natã:
Vive o Senhor, que digno de morte é o homem que fez isso. Pela cordeira
restituirá o quádruplo, porque fez tal coisa, e não teve compaixão”. E
face à sentença do rei, o profeta, hábil na Retórica, lhe disse: “Este
homem és tu”.[7] E assim,
por meio de sua arte, ele levou o rei a condenar-se a si mesmo, o que indica
que há alegorias que são portadoras da verdade .
Por outro lado, há alegorias que
podem ser portadoras de algum preconceito, como na Carta aos Gálatas, quando Paulo
usa a expressão “estas coisas são alegóricas” (Gl 4.24), referindo-se a Agar e
ao Monte Sinai. A alegoria é concluída com uma expressão que pode ser vista
como preconceituosa em relação aos escravos e aos árabes, pois o apóstolo usa a
expressão “lançai fora a escrava e seu filho” (Gl 5.30). E como Paulo compara
Agar, a escrava, à Arábia, é de se perguntar como os descendentes de Agar, os
árabes, interpretaram esse texto ao longo da História, e como seria difícil, em
nossos dias, justificar essa alegoria, tanto para eles quanto para os
escravos que, simplesmente, são lançados fora por serem escravos.
O Novo Testamento apresenta ainda diversas outras
alegorias, as quais se constituíram em um recurso discursivo tanto para
divulgar o evangelho quanto para mantê-lo restrito ao grupo dos discípulos de
Jesus. Outras vezes as alegorias se constituíam em simples metáforas, isto é,
na troca de um termo por outro, como quando Cristo disse: “Retirai-vos, porque
não está morta a menina, mas dorme” (Mt 9.24), ou ainda nessa provocante
narrativa do Quarto Evangelho:
“Nosso amigo Lázaro adormeceu, mas
vou para despertá-lo. Disseram-lhe, pois, os discípulos: Senhor, se dorme,
estará salvo. Jesus, porém, falara com respeito à morte de Lázaro; mas eles
supunham que tivesse falado do repouso do sono. Então, Jesus lhes disse
claramente: Lázaro morreu” (Jo 11.11-14).
É de se observar, porém, que em
relação à narrativa de Mateus sobre a menina, que Espinosa, assim como
Voltaire, negava a possibilidade da ressurreição, afirmando no Tratado
Teológico-Político que a menina, de fato, não estava morta, mas dormia, e
que Cristo teria apenas feito com que ela se despertasse.
Ainda a respeito dos diferentes
cânones e edições da Bíblia, enquanto os cristãos, católicos e protestantes,
adotam um Cânon que inclui a Bíblia Hebraica, ou Antigo Testamento, os judeus
não consideram o Novo Testamento como palavra de Deus. Por outro lado, em
relação ao Cânon católico, os protestantes consideram diversos livros incluídos
no Antigo Testamento como apócrifos. Hobbes afirma, porém, que esses livros
“nos são recomendados pela Igreja, embora não como canônicos, como livros
proveitosos para nossa instrução”, e com base nisso o filósofo afirma que, se
em relação à forma final do Antigo Testamento esses livros merecem crédito,
então “as Escrituras foram postas na forma que as conhecemos por Esdras”. [8]
A questão da formação dos textos
bíblicos, do que é canônico para os judeus, católicos e protestantes leva-nos a
perguntar pela essência mesma da palavra de Deus. Nesse sentido, Thomas Hobbes
afirma que aquilo que temos, na realidade, é um testemunho de alguém que afirma
que Deus lhe falou ou se lhe revelou. Dessa forma, em última análise, para
Hobbes, seria impossível demonstrar, do ponto de vista da Filosofia e da
Ciência, o que Deus realmente disse, ficando o crédito ao que dizem os homens
sobre Deus, sua natureza, sua revelação etc., por nossa conta e risco.
Isso não obstante, o filósofo recorre com frequência a
textos bíblicos, com base na versão autorizada da versão King James da
Bíblia, publicada em 1611, para corroborar seus argumentos e refutar os de seus
adversários, principalmente a hermenêutica eclesiástica, visto que a Igreja,
alegando ser a portadora da revelação e da interpretação correta das
Escrituras, pretendia ser superior ao Estado, provocando a desobediência civil
e se opondo à paz. Por isso é possível dizer hoje, utilizando a terminologia de
Karl Marx, que a Igreja fazia uma interpretação ideológica das Escrituras.
Isso, porém, não se limitou à Igreja católica, mas é recorrente também no
Protestantismo.
O segundo método de interpretação
citado acima, o tipológico, era usada de forma abundante pelos pais da Igreja,
mas já no NT a encontramos em diversos textos. De acordo com Martin Dreher,
essa forma de interpretação “é criação da própria comunidade cristã”, que
encontrava no AT narrativas que serviam como antecipação daquilo que ainda
estava por ocorrer.[9] Diversos
textos do AT relativos a Israel serviam como orientação para os cristãos, como
o de Paulo aos Coríntios (I, 10: 6,11) que afirma: “Ora, estas coisas se
tornaram exemplos (τύποι)para nós, a fim de que não cobicemos as coisas más,
como eles cobiçaram. Estas coisas lhes sobrevieram como exemplos (τυπικῶς) e foram escritas para advertência nossa, de nós
outros sobre quem os fins dos séculos têm chegado”.
Assim, na interpretação tipológica, o AT e os eventos nele
narrados eram vistos como exemplos ou figuras do que iria se cumprir. A
tipologia apresenta, assim, um caráter retórico, pois sua finalidade é
convencer os leitores e a audiência de que os textos do AT, além de se referirem
a Cristo, apresentam um caráter pedagógico e ético, pois vendo onde Israel
errou, os cristãos poderiam orientar-se para não incorrerem em erros
semelhantes. É assim que os textos do AT, antes vistos como relativos apenas à
religião judaica, foram interpretados de forma a corroborar uma nova religião,
o cristianismo.
Porém, mais tarde, no decorrer da História da Igreja, tanto o AT quanto o NT passaram a ser lidos para justificar as mais diferentes e divergentes visões da religião, tendo a Igreja procurado, através do Magistério, determinar quais interpretações eram autorizadas e corretas, criando uma forma de controle não só de seu rebanho, mas procurando dominar a sociedade e interferir na soberania civil.
Porém, mais tarde, no decorrer da História da Igreja, tanto o AT quanto o NT passaram a ser lidos para justificar as mais diferentes e divergentes visões da religião, tendo a Igreja procurado, através do Magistério, determinar quais interpretações eram autorizadas e corretas, criando uma forma de controle não só de seu rebanho, mas procurando dominar a sociedade e interferir na soberania civil.
Dessa forma, a hermenêutica bíblica
passou a ter uma relação direta com a Política. Apesar de Cristo ter dito que o
seu reino não é deste mundo, conforme o Quarto Evangelho, a própria natureza
das relações sociais leva ao exercício do poder entre os homens, quer se trate
de uma instituição religiosa, quer de outra natureza.[10] E
assim a Igreja, como toda instituição, adquiriu, por natureza, um caráter
político, e acrescendo-se a isso os interesses políticos de seus líderes, veio
ela a tornar-se uma instituição controladora das mentalidades, através do
Magistério eclesiástico, e do Estado, através de suas interferências nas
questões de caráter estritamente política, negando, como representante
presumida de Cristo, que o reino deste não é deste mundo, e pretendendo
colocar-se acima do Estado e da livre consciência dos cidadãos, de tal forma
que, seu controle do cânon, da interpretação da Bíblia e das doutrinas cristãs
teve um caráter ideológico, o que demonstra que as relações entre interpretação
e ideologias são razoavelmente antigas.
E assim, nessa dialética, como a
Bíblia passou a ser utilizada historicamente como um instrumento de
justificação do domínio da Igreja não só na esfera religiosa, mas também na
civil, com interferências na Filosofia e na Ciência que levaram grandes sábios
e pesquisadores à perseguição, prisão e morte, se caminhou para o surgimento de
personagens como Guilherme de Ockham, Lutero, que se opôs ao Magistério
Eclesiástico e propôs o livre-exame da Bíblia, Espinosa, que atrevidamente
mostrou que o profeta Isaías chamou ao Egito de povo de Deus, e Hobbes, que
procurou fazer um retorno às coisas mesmas e mostrar que o objetivo principal
do texto bíblico é levar os homens ao Reino de Deus, não a justificação do
poder eclesiástico, que pretendeu colocar-se acima do poder civil.
Quanto a Espinosa, erudito filósofo judeu, que disse que a Bíblia não deve ser lida com referências à Filosofia de Platão, como fazia Agostinho, ou de Aristóteles, "o filósofo" para Santo Tomás, o texto de Isaías citado por ele amplia a noção de povo de Deus, chegando a ser irônico:
Quanto a Espinosa, erudito filósofo judeu, que disse que a Bíblia não deve ser lida com referências à Filosofia de Platão, como fazia Agostinho, ou de Aristóteles, "o filósofo" para Santo Tomás, o texto de Isaías citado por ele amplia a noção de povo de Deus, chegando a ser irônico:
“Naquele dia, Israel será o terceiro com os
egípcios e os assírios, uma bênção no meio da terra; porque o Senhor dos
Exércitos os abençoará, dizendo: Bendito seja o Egito, meu povo, e a Assíria,
obra de minhas mãos, e Israel, minha herança”. [11]
Esse trecho de Isaías passa
despercebido da maioria dos leitores da Bíblia, pois o Egito é sempre lembrado
como a terra da escravidão, contra a qual Deus levantou a sua mão poderosa para
resgatar a Israel. Porém, na própria História da Revelação ou do conhecimento
de Deus há uma evolução, a qual é omitida pelas interpretações oficiais e
tradicionais. E se não fosse a perícia de Espinosa, esse trecho de Isaías
citado no Tratado Teológico-Político jamais seria notado pela maioria
dos leitores.
Por isso verifica-se claramente o
poder das interpretações sedimentadas da Bíblia e a necessidade de se voltar às
coisas mesmas, lendo-a fenomenologicamente, não que se desprezem,
necessariamente, as interpretações já consagradas, mas procurando chegar à essência
do significado do texto.
[1] Karl H. Schelkle, Teologia do Novo Testamento, V.1: Sua
História literária e teológica. S. Paulo: Loyola, 1971, p. 15.
[2] Martin N. Dreher. Bíblia: suas leituras e interpretações na
História do Cristianismo. São Leopoldo: CEBI: Sinodal, 2006, p. 7.
[3] Justino de Roma. I Apologia. S. Paulo: 1995. Trad. de Ivo
Storniolo e Euclides M. Balancin (http://www.ictis.cjb.net,
acesso em 16/06/2017).
[8] Leviatã, p. 229, onde o autor cita II Ed 14. Textos apócrifos são
citados também na obra Do Cidadão.
[10] “O meu reino não é deste
mundo. Se o meu reino fosse deste mundo, os meus ministros se empenhariam por
mim, para que não fosse eu entregue aos judeus”. (Jo 18.36)