quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Retórica e Sofística: Virtudes e Vícios

"No Princípio era o Verbo". (Evangelho de João 1.1).

Ao estudar a Retórica devemos nos lembrar de que há na Filosofia uma tradição negativa em relação a seu uso, especialmente pelos sofistas. Porém, se observarmos atentamente, veremos, em primeiro lugar, em relação à Retórica, que Aristóteles afirma:
O que respeita ao pensamento tem seu lugar na retórica, porque o assunto mais pertence ao campo desta disciplina. O pensamento inclui todos os efeitos produzidos mediante a palavra; dele fazem parte o demonstrar e o refutar, suscitar emoções (como a piedade, o terror, a ira e outras que tais) e ainda o majorar e o minorar o valor das coisas”.[1]

E o que na perspectiva de uma ética idealista como a de Sócrates e Platão poderia ser considerado contrário à virtude, para Aristóteles, quando se trata da Retórica, é justificável pela própria natureza da matéria, pois diz o estagirita:

Evidentemente, quando seja mister despertar as emoções de piedade e de terror, ou o acrescimento de certas impressões, a aceitação de algo verossímil, há que tratar os fatos segundo os mesmos princípios. Apenas com uma diferença: na poesia, os sobreditos efeitos devem resultar somente da ação e sem interpretação explícita, enquanto na retórica resultam da palavras de quem fala. Pois de que serviria a obra do orador, se o pensamento dele se revelasse de per si, e não pelo discurso?.[2]

Já na Arte Retórica, propriamente, Aristóteles afirma que tanto a Retórica quanto a Dialética “tratam de questões que de algum modo são da competência comum de todos os homens, sem pertencerem ao domínio comum de uma ciência determinada”, e também que “todos os homens se empenham dentro de certos limites em submeter a exame ou defender uma tese, em apresentar uma defesa ou acusação”.[3] O homem de quem Platão disse certa vez, na Academia: “hoje a inteligência está ausente”, afirma que a causa do êxito na defesa de uma tese é o objetivo da Arte Retórica, e que é dessa investigação que ela trata. Sua liberalidade em relação à Retórica chega ao ponto dele afirmar: “Exigir prova lógica estrita de um orador não é mais ajuizado que permitir a um matemático usar das artes de persuasão”.[4]
Aristóteles usava com frequência, seja na Retórica na Ética ou mesmo na Filosofia Primeira, termos como: “Ora, todos convirão facilmente...”.[5] Isso Hobbes também fará com frequência, chamando o leitor para junto de seu ponto de vista, apesar de, por outro lado, tanto criticar aspectos da metafísica e da filosofia civil de Aristóteles.
Em segundo lugar, em relação aos sofistas, é necessário fazer algumas observações sobre sua importância, não só Retórica, mas também quanto na Política e na Filosofia, o que passaremos a expor a seguir.
Guillermo Fraile afirma que “a palavra ‘sofistas’ (sophistés) é empregada em sentido elogioso pelos escritores do Séc. V. Píndaro chama sofistas aos poetas. Heródoto aplica o mesmo qualificativo aos Sete Sábios, a Pitágoras e a Sólon”.[6]
Nesse sentido, de acordo com Guthrie, “como D. Laércio notou (1,12), por muito tempo antes de ter adquirido sentido pejorativo, sóphos e sophistés foram uma vez sinônimos. Aparece isso especialmente em Heródoto, que aplica o nome ‘sofista’ a Pitágoras, a Sólon e aos fundadores do culto dionisíaco, e diz que todos os sofistas da Grécia visitaram a capital lídia de Creso, inclusive Sólon”.[7]
Também os Sete Sábios também eram chamados de sofistas, o que se tornou conhecido através de “um fragmento de Aristóteles e também de Isócrates”.[8]
De acordo com Maura Iglésias, os sofistas “se apresentam como educadores, professores, herdeiros da sabedoria (paidéia) tradicional”, e “nos Díssoi Lógoi’ eles são definidos como educadores e mestres de sabedoria (paidéia) e virtude”.[9] Maura Iglésias afirma ainda que “os sofistas foram, na verdade, reputados como grandes mestres”, e que aqueles que os procuravam eram em geral “jovens bem-nascidos, dispostos a pagar muito dinheiro para aprender o que eles apregoavam ensinar”, e que independente do conteúdo ensinado, “o que o jovem buscava junto ao sofista era, fundamentalmente, a areté, qualidade indispensável para se tornar um cidadão bem-sucedido, quer na vida privada, quer na pública”.[10]
Fraile associa o sentido pejorativo e desfavorável do termo à Guerra do Peloponeso. Afirma que Atenas, “enredada na desgraçada Guerra do Peloponeso, ao refletir sobre as causas de sua decadência, a reação contra os filósofos jônicos e contra os sofistas custou equivocadamente a vida a Sócrates”. [11]
De acordo com Fraile:

Após as guerras médicas e persas... Atenas se converte em cabeça de uma poderosa liga política e centro da vida comercial e cultural da Grécia, alcançando o apogeu de sua grandeza sob Péricles (499-429). O predomínio da aristocracia foi substituído por um regime no qual os cidadãos podiam fazer ouvir sua voz na ágora e intervir nos debates públicos. Com isto a arte da palavra, o brilho da oratória e o manejo da dialética para a discussão adquirem grande importância em um povo artista, amante do bem-dizer. A Retórica se convertia em uma formidável arma política, que assegurava os êxitos mais brilhantes a quem sabia servir-se dela em praça pública e ante os jurados.

Harold Lasswell observa que “as mentes especulativas dos gregos demonstraram fascínio pelos diferentes usos da linguagem, tratando-a como um instrumento a serviço da verdade, meio de expressão artística e agente de persuasão... Em Atenas, onde as ações coletivas freqüentemente dependiam do resultado do debate, os sofistas desenvolveram regras práticas sobre a eficácia do discurso”.[12]
Porém, Sócrates denunciava a fraqueza dos atenienses diante dos discursos dos sofistas, dizendo, por exemplo: “são os próprios ateninenses que são sóphoi, é deles que os sofistas extraem suas lições”.[13]
A palavra certamente é uma vantagem em relação à força. Solange Vergnières afirma que a democracia ateniense é o regime em que “certamente, o povo (demos)... é livre: não cede à força brutal de um déspota, cede à persuasão”. Porém, acrescenta: “isto não significa que escape à servidão”.[14] E lembra que o próprio Górgias afirmara que “a arte de persuadir... torna, por sua influência, todas as coisas escravas (doula), com pleno consentimento e não pela força”. [15] E Vergnières complementa, afirmando que “o discurso submete, mas o faz com o consentimento da vítima”, concluindo que “a democracia é, pois, o regime em que se exerce o poder pelos mestres da palavra”.[16] Por isso, podemos afirmar, com Maura Iglésias, que “Platão viu, nesse ensino sofístico, um perigo para a cidade”.[17]
O Elogio de Helena, nesse sentido, de acordo com Iglésias, desde que se entenda Helena como “aquela que se rapta” revela o sentido político desse processo discursivo que se esvazia da ontologia. “Cada um está encerrado em seus pensamentos, as palavras só se referem à ordem do discurso”, isto é, não à ordem do ser. [18]
Górgias reconhece a fraqueza da platéia e das analogias. A falta de memória do demos, “faculdade essencial sobre a qual repousa toda a paidéia”, reduzido a massa, possibilita que ele seja enganado pelos discursos.[19] (Idem, p. 36).
O próprio Górgias afirmava que “a palavra é déspota poderoso”.[20] E ao comparar o orador ao médico ele “pensa menos no profissional eficaz, caro a Protágoras, do que no mágico, detentor do equívoco phármacon, capaz de por fim à dor, mas também à vida”.[21]
No entanto, no diálogo de Platão dedicado à Retórica, que leva o nome do famoso sofista e gramático, Górgias afirma que o bom ou mau uso do que ele ensina depende de seus alunos. É verdade, porém, que tanto ele quanto outros sofistas tinham a habilidade de “pronunciar um discurso justo e outro injusto sobre o mesmo tema”, no que são criticados por Aristófanes na obra As Nuvens.[22] E o próprio é “capaz de produzir um discurso que louve os valores morais contra o poder da retórica” e a periculosidade da linguagem.[23]
Contra esse discurso onde têm lugar os conceitos mais variados, diferentes e contraditórios entre si (chamado de "polimatia"), Sócrates e Platão reagem com rigor, pois a arte da palavra pode decair para o simples jogo, sem compromisso com a verdade e os cidadãos, substituindo a deliberação pelo “prazer de escutar e ser seduzido por oradores profissionais”, contribuem para a decadência da cidade.[24] E se a multidão deixar de lado a influência da lei e se mostrar eticamente inconsistente, incapaz de resistir aos argumentos sutis do orador que substitui a noção do kairós (tempo oportuno) da palavra pelo simples oportunismo, e de participar da discussão, comunicando seus próprios pensamentos e participando dos rumos da pólis, seus membros “só estão ligados entre si pelo pathos suscitado pelo discurso..., se mantêm juntos unicamente porque estão literalmente suspensos à palavra do orador”, o que pode ser comparado à imagem dos “prisioneiros da caverna platônica, fascinados pelas ficções que os exibidores de marionetes lhes contam”.[25]
No diálogo intitulado Górgias, Platão discute a natureza da Retótica através de discussões entre Sócrates, Górgias e outros atores da sociedade de seu tempo. Sua intenção é refutar a Retórica, afirmando sua incapacidade de tornar os homens bons por não proporcionar a ciência da justiça. Górgias é descrito como um mestre de Retórica competente e concorrido, que cobrava altos salários por suas aulas. Górgias afirma que a Oratória trata de palavras e que seu fim é proporcionar aos homens os maiores bens, os quais consistem em “liberdade individual e governo sobre os demais na própria cidade” (453d). A persuasão é o fim visado pela argumentação.
Sócrates procura atuar num contexto de mudança de valores, aparecendo nos diálogos de Platão como restaurador de princípios morais prescindidos pelos sofistas, os quais ele não diferencia dos retores (519e, 520a).[26] Ele indaga a Górgias se a Oratória produz em seus ouvintes a crença ou a ciência e afirma que, ao apresentar o aparente e não o verdadeiro, o orador poderá mostrar que é mau. Diante disso, Górgias afirma que a oratória “versa sobre o justo e o injusto” (454b), e defende os mestres, afirmando, conforme já observamos, que não tem culpa se seus discípulos não se utilizam adequadamente daquilo que aprendem.
Sócrates afirma que a Oratória não é uma arte, mas uma prática adquirida (462c) e define a arte como a ação que conhece o próprio objeto e que procura aperfeiçoar-se no conhecimento e no atendimento do objetivo a que se propõe ao lidar com ele. Para o filósofo a Oratória não é arte, não é ciência, mas sim uma falsificação da atividade política justa, e por não possuir a ciência da justiça, ela não pode tornar perfeitos ou melhores os homens.
Ainda para Sócrates, o melhor é necessariamente o mais sábio, virtuoso, sadio de alma, que pode tornar melhores os outros homens, resultado que os retores não alcançam. A Política, e não a oratória, é apresentada como “tekhné”, isto é, como arte, pois executa a ação com conhecimento e não lida com as aparências, mas com a verdade.
Cálicles, personagem do diálogo que pode ser um duplo de Górgias, critica Sócrates em relação ao seu apego à Filosofia, advertindo que o homem deve ater-se à Filosofia até certa idade, após o que é necessário lidar com a vida prática.[27] Ele ironiza Sócrates, ainda, afirmando que se as noções de justo e injusto fossem como ele afirmava, a realidade estaria pelo avesso ou de ponta-cabeça (481c).[28]
Porém, Sócrates afirma que os bons homens que ocupassem o poder não seriam tirados, como o foram Temístocles, Milcíades e o próprio Péricles (516e) e que sua argumentação, portanto, não lidava com abstrações sem vínculo com os fatos do dia a dia, como pretendia dizer o sofista.
A História da Filosofia apresenta, como temos observado até aqui, interpretações opostas sobre a obra e a importância dos Sofistas. De um lado, temos a versão que se tornou célebre, na linha de Platão e Xenofonte, ambos discípulos de Sócrates, que apresenta os Sofistas como “um perigo para a cidade”. Originalmente, porém, como já vimos, a palavra “sofista” não tinha o sentido pejorativo que lhe atribuíram Sócrates, Platão e Xenofonte. Este, como é notório, atribui-lhe a sinonímia com a palavra “prostituto” no texto dos Memoráveis em que narra um diálogo entre Sócrates e o sofista ateniense Antifonte. O termo pejorativo aparece no trecho citado a seguir:

Oh, Sócrates! – disse o sofista – creio que és justo mas, de modo algum, sábio; e parece-me que tu mesmo o reconheces não cobrando remuneração alguma por tua conversação. Não obstante, a ninguém entregarias gratuitamente, ou por menos do seu valor, o teu abrigo, a tua casa ou outra cousa que te pertença. É claro, pois, se atribuísse algum valor à tua conversação, também por esta cobrarias uma retribuição que não fosse inferior ao seu justo preço. Poder-se-á, então, chamar-te justo, uma vez que não enganas por avidez, mas não sábio, visto que o que conheces nada vale.
Oh, Antifonte! – responde Sócrates – acreditamos que a formosura e a sabedoria possam empregar-se igualmente tanto de maneira honesta como desonesta. Se uma mulher vender por dinheiro a sua beleza a quem pedir, chamar-se-á prostituta; e, do mesmo modo, aquele que vender sua sabedoria por dinheiro a quem procurar, chamar-se-á sofista, vale dizer ‘prostituto’. Ao contrário, se alguém ensinar tudo de bom que sabe a quem julgue bastante disposto por natureza e se torne seu amigo, cremos que esse cumpre com o dever do cidadão ótimo.[29]

Quando abrimos alguns livros de Filosofia vemos essa tradição ser renovada. Outros, porém, demonstram uma visão diferente dos sofistas, como o próprio Aristóteles. Guthrie afirma que “nos assuntos em que os sofistas estavam primariamente interessados, o ponto de vista de Aristóteles estava de muitas formas mais próximo ao deles que o de Platão”, principalmente em relação à sua teoria ética social e política. [30]
De acordo com Aristóteles, as exigências em relação aos métodos, aos resultados, à exatidão e aos fins da pesquisa nas áreas da Física não são as mesmas quando se trata de problemas do comportamento humano, os quais se incluem na área prática, cujo rigor era de acordo com os objetos examinados. Na Ética ele deixa isso claro, quando explica seu método em relação a seu objeto de estudo, afirmando:

Não devemos procurar o mesmo rigor em todas as discussões indiferentemente, como também não podemos exigir isso nas produções das artes. As coisas belas e as coisas justas que constituem o objeto da política dão margem a tais divergências, a tais incertezas, a ponto de termos acreditado que elas existiam somente por convenção, e não por natureza... Portanto, devemos nos contentar, ao tratar de assuntos semelhantes e ao partir de princípios semelhantes, em mostrar a verdade de um modo grosseiro e aproximado... Por conseguinte, é no mesmo espírito que deverão ser acolhidas as diversas visões que emitimos, pois é próprio do homem culto não procurar o rigor para cada tipo de coisa senão na medida em que o permite a natureza do assunto. Desta forma, num domínio determinado, julga bem aquele que recebeu uma educação apropriada; ao passo que, numa matéria excluindo toda especialização, o bom juiz é aquele que recebeu uma cultura geral”.[31]

Também na Ética ele ensina que “exigir prova lógica estrita de um orador não é mais ajuizado que permitir a um matemático usar das artes de persuasão”, bem como que a exatidão buscada por um carpinteiro não é mesma buscada por um geômetra.[32]
Dessa forma, argumenta Guthrie, Aristóteles abandona, ao tratar da Ética, as normas ou modelos morais absolutos ou existentes por si mesmos. Enquanto Sócrates e Platão consideravam que saber a essência da virtude era um pré-requisito para o cidadão tornar-se bom, Aristóteles afirmava: “o objeto de nossa inquirição não é saber o que é virtude, mas nos tornar homens bons”.[33]
Guthrie afirma que ele prefere claramente o método de Górgias de enumerar virtudes separadas à exigência socrática de uma idealização da virtude, e ainda que na Ética a Nicômaco, onde se opõe frontalmente à teoria platônica das formas, “encontramos uma defesa da relatividade e multiplicidade de bens que quase poderia ter sido escrita por Protágoras”.[34]
Os Sofistas, apesar das críticas acertadas que lhes são feitas, deram grande contribuição ao desenvolvimento da Democracia e do Direito, tanto por sua habilidade de argumentar como por sua interpretação de forma zetética dos princípios morais da sociedade e das tradições da Lei, à qual viam de forma laica, isto é, despojada de seus elementos míticos e teológicos, e não mais dependente, como antes, de consulta aos oráculos para que preceitos fossem adotados e decisões fossem tomadas. Conforme Ernest Barker, “em Atenas os tribunais eram júris populares amplos, onde a retórica e a capacidade de argumentar persuasivamente valiam muito”. [35]
Aristóteles não interpreta a Retórica de forma negativa como o fizeram Sócrates e Platão, apesar de reconhecer o seu abuso nas assembleias. Para ele, a vida na Pólis só é possível porque “os homens possuem em geral aquele mínimo de virtude cívica e o lógos que lhes permitem distinguir o certo do errado, o justo do injusto”. [36] Ele afirma também que os homens, em geral, são capazes de compreender uma argumentação racional, situada na tanto na área da retórica quanto da dialética, as quais, para ele, têm um sentido diverso do de Platão, complementando-se. Dialética, para ele, diz respeito às disputas do cotidiano, das assembleias e dos tribunais, não é entendida como ciência. A Retórica, assim, é vista como útil para os negócios públicos, pois “os homens são obrigados a deliberar não em relação ao que é certo, e sim ao que é incerto, coisas sobre as quais seus juízos não podem ser mais que probabilidades”.[37]
Os Sofistas, em lugar de adotarem uma antropologia idealista, valorizam a subjetividade, afirmando que o raciocínio está à disposição de nossas preferências. Tal abordagem do pensamento e da ação moral encontrará reverberações na posteridade, tanto no Humanismo quanto no Iluminismo. De acordo com Jaeger, os sofistas do século V a. C. são os iniciadores da antropologia racional. Suas teses baseiam-se em sua concepção da “phýsis”, e “toda a educação é um produto da phýsis”[38], enquanto Jean Touchard afirma que “Protágoras enfileira num movimento de ideias muitas vezes comparado à Äufklärung”. [39]
Dificilmente se poderia, como o Sócrates de Xenofonte, chamar a alguém com as ideias de Antifonte sobre a Lei e a Natureza de “prostituto”, principalmente se observarmos suas afirmações sobre a igualdade natural dos homens nos seguintes fragmentos do Tratado Sobre a Verdade. Diz Antifonte:

Os que nascem em berço humilde não recebem nossa veneração, nem a nossa reverência. Neste ponto nos assemelhamos aos bárbaros no modo com que nos comportamos com relação aos outros. Nossas faculdades mentais são absolutamente as mesmas, quer sejamos gregos ou bárbaros. Podemos observar as características de qualquer das faculdades que pela natureza são necessárias a todos os homens... Todos respiramos o mesmo ar, pelas narinas e pela boca.[40]

Concluindo essa breve incursão num tema tão vasto, lembramos que, de acordo com Guthrie, no século V a. C. a Filosofia estava diretamente ligada à vida prática e seus problemas. [41] Assim, discutiam sobre a moral, a política e a origem e objetivo das sociedades organizadas, isto é, os sofistas discutiram questões que sempre causaram impacto na História da Filosofia, como a linguagem, o conhecimento da verdade, a natureza humana, a lei e a justiça, a igualdade, a liberdade, as instituições sociais, como a religião, e até a própria natureza e existência dos deuses.
Guthrie ainda observa que “o que quer que pensemos do movimento sofista, devemos todos estar de acordo... que nenhum movimento intelectual pode-se comparar com ele na permanência de seus resultados, e que as questões propostas pelos sofistas nunca se permitiram repousar na História do Pensamento Ocidental até os nossos dias”. [42]
Para corroborar sua tese, apóia-se em vários autores, dentre os quais, por sua importância, citamos Cassirer, que afirma: “depois de mais de dois milênios, o século XVIII estabelece contato direto com o pensamento da antiguidade. As duas teses fundamentais representadas na República de Platão por Sócrates e Trasímaco opõem-se mutuamente de novo”.[43] E Guthrie conclui: “E ainda continuam opostas até hoje”, apontando, naturalmente, para a atualidade do pensamento de Sócrates e Trasímaco sobre a Justiça, tema do Livro I da República, no qual é dedicado um amplo espaço ao sofista Trasímaco, que afirmava que a justiça é o direito do mais forte e dizia que Sócrates, na verdade, por nada ensinar, mas apenas questionar seus interlocutores, poderia, ele sim, ser considerado um sofista.[44] Noutro diálogo, porém, Platão dirá que Sócrates é “o bom sofista”, isto é, usava da dialética para conhecer a verdade, não simplesmente para fazer antilogias, pois entendia que se toda tese pudesse ser negada, então seria impossível o conhecimento da verdade. Assim, quando refutava os argumentos de seus alunos ou adversários, ou de qualquer cidadão, fazia-o em busca do conceito, não com a finalidade de negar a existência da verdade.
[1] Aristóteles. Poética (Περί Ποιητικής). Tradução de Eudoro de Souza. S. Paulo: Ars Poetica, 1993, p. 112. Texto bilíngue Grego-Português. Na tradução de Antônio Pinto de Carvalho, feita do Francês, lê-se: “O que respeita ao pensamento tem seu lugar nos Tratados sobre a Retórica, pois este gênero de investigações é seu objeto próprio”. Arte Retórica e Arte Poética. (Art Rhétorique et Art Poétique). Rio de Janeiro: Tecnoprint, s/d.
[2] Aristóteles. Poética, op. cit., p. 113.
[3] Aristóteles. Arte Retórica e Arte Poética (Art Rhétorique et Art Poétique), Cap. I,I. Tradução de Antônio Pinto de Carvalho. Rio de Janeiro: Tecnoprint, s/d.
[4] ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, 10694 b 25 e 1098a 26ss, apud GUTHRIE, op. cit., p. 54
[5] Arte Retórica, op. cit. (I,I).
[6] Guillermo Fraile. Historia de la da Filosofia I: Grecia y Roma. Madrid, 1997, Biblioteca de Autores Cristianos, p. 225.
[7] Guthrie, W. C. K. Os Sofistas. S. Paulo: Paulinas, 1995, p. 32
[8] Eduardo C. B. Bittar. Curso de Filosofia do Direito. 2. ed. SP, Atlas, 2002, p. 55.
[9] Maura Iglésias, Curso de Filosofia, org. por Antonio Rezende, p. 32. Os Dissoì Lógoi (Discursos Duplos) formam um Tratado de Retórica, escrito em torno de 404 a.C. (Cf. Joseane Prezzoto, Dissoì Lógoi: Sofística e Linguagem. Dissertação de Mestrado em Letras. Universidade Federal do Paraná, 2009)
[10] Idem, Ibid.
[11] Guillermo Fraile, op. cit., p. 225.
[12] H. D. Lasswell. A Linguagem da Política. Ed. da Universidade de Brasília,1979, p.13.
[13] Solange Vergnières. Ética e Política em Aristóteles. S. Paulo: Paulus, 1999, p. 32.
[14] Op. cit., p. 35.
[15] Idem. A autora cita Platão, Filebo, 58b.
[16] Idem, p. 35 e 36
[17] Maura Iglésias, op. cit., p. 33.
[18] Idem, p. 34.
[19] Idem, p. 36.
[20] Elogio de Helena, 8, DK, II, 290, apud Bittar, Curso de Filos. do Direito, op. cit., p. 59.
[21] S. Vergnières, op. cit., p. 36.
[22] Apud Fraile, op. cit., p. 225.
[23] S. Vergnières, op. cit., p. 37.
[24] Idem, p. 37
[25] Idem, ibidem.
[26] De acordo com W. Jaeger, o retor era o estadista ou candidato que necessitava, num Estado democrático, da habilidade da oratória. (Paidéia, p. 605).
[27] Cálicles referia-se à Filosofia como prática educativa, isto é, à Sofística. Cf. JAEGER, op. cit., p. 619.
[28] No Livro I da República, Trasímaco observa a Sócrates que a realidade é diferente de seus conceitos de belo, bom e justo, que os injustos são louvados, mesmo por aqueles que sabem dos meios de que se utilizam para ampliar seu poder. Para Cálicles, tal louvor seria uma forma de manifestar o mesmo desejo de poder.
[29] XENOFONTE, Memoráveis (I, VI, 11-13), apud MONDOLFO, R. Sócrates, p. 12.
[30] GUTHRIE, Os Sofistas, op. cit., p. 54.
[31] ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, I, 3, apud Paul RICOEUR, Interpretação e Ideologias, p.63.
[32] ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, 10694 b 25 e 1098a 26ss, apud GUTHRIE, op. cit., p. 54.
[33] Idem, 1103 b27, ibidem, p. 54.
[34] GUTHRIE, op. cit., p. 55.
[35] BARKER, E. Teoria Política Grega, p. 91.
[36] STONE, I. V. O Julgamento de Sócrates, p. 104.
[37] Idem, p. 106.
[38] W. JAEGER, La Teología de los Primeros Filósofos Griegos, p. 175s.
[39] TOUCHARD, J. História das Ideias Políticas, Vol. I, p. 45.
[40] In: BARKER, E. op. cit. p. 89s.
[41] W. K. C. GUTHRIE. Os Sofistas, p. 7.
[42] Idem, p. 9.
[43] Ernst Cassirer. A Filosofia do Iluminismo, cap. VI
[44] GUTHRIE, op. cit., p. 9, nota 1.