sábado, 10 de dezembro de 2011

A Religião e o Conhecimento de Deus em Hobbes

(As notas deste texto seguem a numeração de um texto originalmente mais extenso, parte de minha Tese de Doutorado em Filosofia na Unicamp, escrito em 2010).

No Cap. XII do Leviatã Hobbes afirma que a religião é uma característica natural do homem. Nesse importante capítulo de toda a sua obra o autor trata das religiões dos gentios, baseadas no medo, e de seu uso na política de forma oportunista, como se a vontade das autoridades civis fosse a vontade de Deus, bem como da religião daqueles que buscam as causas das coisas, chegando à concepção de uma causa não causada, à qual “os homens dão o nome de Deus”, o que foi reconhecido mesmo entre os pagãos, afirma o filósofo, mas nestes não havia necessariamente a adoração do Deus único, a qual, apesar de presente antes de Abraão, como em Abel e Noé, foi revelada a Abraão e aos seus descendentes, e selada através de um pacto, sob Moisés, que tanto era um líder político quanto sacerdotal, a respeito do que o filósofo tratará mais pormenorizadamente no Leviatã (Parte III), mostrando como, com a instauração da monarquia em Israel, o povo rejeitou o pacto com Deus e fez um pacto de obediência ao poder civil, comandado por Saul, que tinha um poder absoluto, dato pelo próprio Deus, donde o filósofo corroborará sua tese da obediência em primeiro lugar ao poder civil, o que já trabalhara antes em sua obra Do Cidadão.

Sobre natureza religiosa do homem, Hobbes afirma:

“Verificando que só no homem encontramos sinais, ou frutos da religião, não há motivo para duvidar que a semente da religião se encontra também apenas no homem, e consiste em alguma qualidade peculiar, ou pelo menos em algum grau eminente dessa qualidade, que não se encontra nas outras criaturas vivas”. [15]

Ele relaciona o desejo do conhecimento das causas com o reconhecimento de um único Deus eterno, como podemos verificar nas afirmações seguintes:

“O reconhecimento de um único Deus eterno, infinito e onipotente pode ser derivado do desejo que os homens sentem de conhecer as causas dos corpos naturais, e suas diversas virtudes e operações, mais facilmente que do medo do que possa vir a acontecer-lhes nos tempos vindouros”. Aquele que de qualquer efeito que vê ocorrer... mergulhe profundamente na investigação das causas, deverá concluir que necessariamente existe um primeiro motor. Isto é, uma primeira e eterna causa de todas as coisas, que é o que os homens significam com o nome Deus. [16]

Para Hobbes, porém, a rigor, Deus, devido à sua natureza, não é um objeto de estudo da Filosofia. Ele definira isso bem antes, nos Elementos da Lei Natural e Política (1640), ao afirmar:

“Assim como Deus Todo-Poderoso é incompreensível, segue-se que nós não podemos ter uma concepção ou imagem da Divnidade, e consequentemente todos os seus atributos significam a nossa inabilidade e impotência para conceber qualquer coisa concernente à sua natureza, e não alguma concepção sua, excetuando-se apenas esta, que existe Deus. Afinal, os efeitos que naturalmente reconhecemos envolvem uma potência que os produziu antes que eles tivessem sido produzidos; e essa potência pressupõe alguma coisa existente que a tenha enquanto potênca. E a coisa que assim existe como potência para produzir, se não fosse eterna, deveria ter sido produzida por alguma outra anterior a ela, e esta novamente por outra anterior a ela, até que chegássemos a uma eterna, ou seja, à potência primeira de todas as potências, e causa primeira de todas as causas. E esta é aquela que todos os homens concebem pelo nome de Deus, envolvendo eternidade, incompreensibilidade e onipotência. E então todos que o considerarem poderão saber que Deus existe, mas não o que ele é. Mesmo num homem que tenha nascido cego, embora não seja capaz de ter qualquer imaginação acerca de que tipo de coisa é o fogo, ainda assim ele não pode deixar de saber que existe alguma coisa a que os homens dão o nome de fogo, porque ela o esquenta”. [17]

Também na obra Sobre o Corpo Hobbes afirma que Deus é “eterno, não-gerado, incompreensível”.[18] E na obra Do Cidadão explica que “eterno” significa fora do tempo. Ora, isso só pode ser entendido como uma forma de demonstrar a veneração de Deus, pois se tudo o que existe está no tempo, logo não existiria Deus. Porém ao chamá-lo de eterno, certamente o homem está querendo dizer que Ele, apesar de estare no tempo, não tem uma existência tempoalmente limitada. Porém, explicar a sua natureza não é possível. [19]

No Leviatã ele reafirmará que a linguagem usada em relação à natureza de Deus é uma forma de veneração, pois, por um lado, afirma ele, “seja o que for que imaginemos é finito”, e por outro lado, as afirmações de “que alguma coisa está toda neste lugar, e toda em outro lugar ao mesmo tempo; que duas, ou mais coisas, podem estar num e no mesmo lugar ao mesmo tempo: nenhuma destas coisas jamais ocorreu ou pode ocorrer na sensação; mas são discursos absurdos, aceitos pela autoridade (sem qualquer significação) de filósofos iludidos, e de escolásticos iludidos, ou iludidores”.[20]

Sendo assim, é forçoso em seu raciocínio afirmar, sobre o conhecimento de Deus e a sua veneração:

“Quando dizemos que alguma coisa é infinita, queremos apenas dizer que não somos capazes de conceber os limites e fronteiras da coisa designada, não tendo concepção da coisa, mas de nossa própria incapacidade. Portanto o nome de Deus é usado, não para nos fazer concebê-lo (pois ele é incompreensível e sua grandeza e poder são inconcebíveis), mas para que o possamos venerar”. [21]

Quanto ao medo como origem das religiões dos gentios, afirma o filósofo:

“Alguns dos antigos poetas disseram que os deuses foram criados pelo medo dos homens, o que quando aplicado aos deuses (quer dizer, aos muitos deuses dos gentios), é muito verdadeiro”. [22]

Esses deuses, inventados devido à ignorância que a maioria dos homens têm das causas, eram tantos que Hobbes observa “que havia entre os pagãos quase tão grande variedade de deuses como de atividades”.[23]

Mas as sementes da religião, além de serem cultivadas por homens que “as alimentaram e ordenaram segundo sua própria invenção”, como os gentios, também foram cultivadas por aqueles “que o fizeram sob o mando e direção de Deus”. Porém, Hobbes afirma que o objetivo, em ambas as espécies de religião era levar os que confiavam em seus autores a “tender mais para a obediência, as leis, a paz, a caridade e a sociedade civil”. [24]

A primeira espécie de religião, afirma o filósofo, faz parte da política humana, enquanto a segunda “é a política divina, que encerra preceitos para aqueles que se erigiram como súditos do Reino de Deus” e desta fazem parte, afirma Hobbes, “Abraão, Moisés e nosso abençoado Salvador, dos quais chegaram até nós as leis do Reino de Deus”. [25]

Porém, seja nas religiões dos gentios ou na religião revelada pelo Deus único, o caráter humano desse fenômeno permanece. E como o próprio Hobbes afirma: “O problema não é o da obediência a Deus, e sim o de quando e o que Deus disse”. [26]

Segundo essa tese, nem tudo o que se alega ter sido falado por Deus realmente o foi, e muitos daqueles que presumen falar em seu nome têm pretensões de domínio. Assim, Hobbes critica os teólogos e clérigos que negavam a razão e a ciência e controlavam as consciências dos homens, e contra isso ele apresenta argumentos baseados tanto na filosofia civil quanto nas próprias nas Escrituras, além de valer-se de várias técnicas da Retórica para persuadir seus leitores, principalmente no Leviatã, onde chega a ser agressivo com os teólogos, como se estes de nada soubessem. Mas sobre isso falaremos em outro texto, se Deus permitir.

[15] Leviatã, 2. ed., Os Pensadores, 1979, Cap. XII, p. 65
[16] Idem, p.66.
[17] Hobbes, Os Elementos da Lei Natural e Política: I,11,2.
[18] Sobre o Corpo. Parte I: Computação ou Lógica, p. 17. Trad. e Notas de José Oscar de Almeida Marques. Clássicos da Filosofia: Cadernos de Tradução, 12. IFCH/UNICAMP, 2005
[19] Como profundo conhecedor da Bíblia, Hobbes certamente conhecia o texto do Segundo Isaías que diz: “Verdadeiramente, tu és Deus misterioso, ó Deus de Israel, ó Salvador” (Is 45:15), onde misterioso pode ser traduzido por “que te escondes”.
[20] Leviatã, op. cit., Cap. III, p. 19.
[21] Idem, ibidem.
[22] Leviatã, op. cit., Cap. XII, p. 66
[23] Idem, p. 71
[24] Idem, p. 67
[25] Idem, p. 67-68
[26] Leviatã, Cap. XXXII, p. 225.