sábado, 10 de dezembro de 2011

A Religião e o Conhecimento de Deus em Hobbes

(As notas deste texto seguem a numeração de um texto originalmente mais extenso, parte de minha Tese de Doutorado em Filosofia na Unicamp, escrito em 2010).

No Cap. XII do Leviatã Hobbes afirma que a religião é uma característica natural do homem. Nesse importante capítulo de toda a sua obra o autor trata das religiões dos gentios, baseadas no medo, e de seu uso na política de forma oportunista, como se a vontade das autoridades civis fosse a vontade de Deus, bem como da religião daqueles que buscam as causas das coisas, chegando à concepção de uma causa não causada, à qual “os homens dão o nome de Deus”, o que foi reconhecido mesmo entre os pagãos, afirma o filósofo, mas nestes não havia necessariamente a adoração do Deus único, a qual, apesar de presente antes de Abraão, como em Abel e Noé, foi revelada a Abraão e aos seus descendentes, e selada através de um pacto, sob Moisés, que tanto era um líder político quanto sacerdotal, a respeito do que o filósofo tratará mais pormenorizadamente no Leviatã (Parte III), mostrando como, com a instauração da monarquia em Israel, o povo rejeitou o pacto com Deus e fez um pacto de obediência ao poder civil, comandado por Saul, que tinha um poder absoluto, dato pelo próprio Deus, donde o filósofo corroborará sua tese da obediência em primeiro lugar ao poder civil, o que já trabalhara antes em sua obra Do Cidadão.

Sobre natureza religiosa do homem, Hobbes afirma:

“Verificando que só no homem encontramos sinais, ou frutos da religião, não há motivo para duvidar que a semente da religião se encontra também apenas no homem, e consiste em alguma qualidade peculiar, ou pelo menos em algum grau eminente dessa qualidade, que não se encontra nas outras criaturas vivas”. [15]

Ele relaciona o desejo do conhecimento das causas com o reconhecimento de um único Deus eterno, como podemos verificar nas afirmações seguintes:

“O reconhecimento de um único Deus eterno, infinito e onipotente pode ser derivado do desejo que os homens sentem de conhecer as causas dos corpos naturais, e suas diversas virtudes e operações, mais facilmente que do medo do que possa vir a acontecer-lhes nos tempos vindouros”. Aquele que de qualquer efeito que vê ocorrer... mergulhe profundamente na investigação das causas, deverá concluir que necessariamente existe um primeiro motor. Isto é, uma primeira e eterna causa de todas as coisas, que é o que os homens significam com o nome Deus. [16]

Para Hobbes, porém, a rigor, Deus, devido à sua natureza, não é um objeto de estudo da Filosofia. Ele definira isso bem antes, nos Elementos da Lei Natural e Política (1640), ao afirmar:

“Assim como Deus Todo-Poderoso é incompreensível, segue-se que nós não podemos ter uma concepção ou imagem da Divnidade, e consequentemente todos os seus atributos significam a nossa inabilidade e impotência para conceber qualquer coisa concernente à sua natureza, e não alguma concepção sua, excetuando-se apenas esta, que existe Deus. Afinal, os efeitos que naturalmente reconhecemos envolvem uma potência que os produziu antes que eles tivessem sido produzidos; e essa potência pressupõe alguma coisa existente que a tenha enquanto potênca. E a coisa que assim existe como potência para produzir, se não fosse eterna, deveria ter sido produzida por alguma outra anterior a ela, e esta novamente por outra anterior a ela, até que chegássemos a uma eterna, ou seja, à potência primeira de todas as potências, e causa primeira de todas as causas. E esta é aquela que todos os homens concebem pelo nome de Deus, envolvendo eternidade, incompreensibilidade e onipotência. E então todos que o considerarem poderão saber que Deus existe, mas não o que ele é. Mesmo num homem que tenha nascido cego, embora não seja capaz de ter qualquer imaginação acerca de que tipo de coisa é o fogo, ainda assim ele não pode deixar de saber que existe alguma coisa a que os homens dão o nome de fogo, porque ela o esquenta”. [17]

Também na obra Sobre o Corpo Hobbes afirma que Deus é “eterno, não-gerado, incompreensível”.[18] E na obra Do Cidadão explica que “eterno” significa fora do tempo. Ora, isso só pode ser entendido como uma forma de demonstrar a veneração de Deus, pois se tudo o que existe está no tempo, logo não existiria Deus. Porém ao chamá-lo de eterno, certamente o homem está querendo dizer que Ele, apesar de estare no tempo, não tem uma existência tempoalmente limitada. Porém, explicar a sua natureza não é possível. [19]

No Leviatã ele reafirmará que a linguagem usada em relação à natureza de Deus é uma forma de veneração, pois, por um lado, afirma ele, “seja o que for que imaginemos é finito”, e por outro lado, as afirmações de “que alguma coisa está toda neste lugar, e toda em outro lugar ao mesmo tempo; que duas, ou mais coisas, podem estar num e no mesmo lugar ao mesmo tempo: nenhuma destas coisas jamais ocorreu ou pode ocorrer na sensação; mas são discursos absurdos, aceitos pela autoridade (sem qualquer significação) de filósofos iludidos, e de escolásticos iludidos, ou iludidores”.[20]

Sendo assim, é forçoso em seu raciocínio afirmar, sobre o conhecimento de Deus e a sua veneração:

“Quando dizemos que alguma coisa é infinita, queremos apenas dizer que não somos capazes de conceber os limites e fronteiras da coisa designada, não tendo concepção da coisa, mas de nossa própria incapacidade. Portanto o nome de Deus é usado, não para nos fazer concebê-lo (pois ele é incompreensível e sua grandeza e poder são inconcebíveis), mas para que o possamos venerar”. [21]

Quanto ao medo como origem das religiões dos gentios, afirma o filósofo:

“Alguns dos antigos poetas disseram que os deuses foram criados pelo medo dos homens, o que quando aplicado aos deuses (quer dizer, aos muitos deuses dos gentios), é muito verdadeiro”. [22]

Esses deuses, inventados devido à ignorância que a maioria dos homens têm das causas, eram tantos que Hobbes observa “que havia entre os pagãos quase tão grande variedade de deuses como de atividades”.[23]

Mas as sementes da religião, além de serem cultivadas por homens que “as alimentaram e ordenaram segundo sua própria invenção”, como os gentios, também foram cultivadas por aqueles “que o fizeram sob o mando e direção de Deus”. Porém, Hobbes afirma que o objetivo, em ambas as espécies de religião era levar os que confiavam em seus autores a “tender mais para a obediência, as leis, a paz, a caridade e a sociedade civil”. [24]

A primeira espécie de religião, afirma o filósofo, faz parte da política humana, enquanto a segunda “é a política divina, que encerra preceitos para aqueles que se erigiram como súditos do Reino de Deus” e desta fazem parte, afirma Hobbes, “Abraão, Moisés e nosso abençoado Salvador, dos quais chegaram até nós as leis do Reino de Deus”. [25]

Porém, seja nas religiões dos gentios ou na religião revelada pelo Deus único, o caráter humano desse fenômeno permanece. E como o próprio Hobbes afirma: “O problema não é o da obediência a Deus, e sim o de quando e o que Deus disse”. [26]

Segundo essa tese, nem tudo o que se alega ter sido falado por Deus realmente o foi, e muitos daqueles que presumen falar em seu nome têm pretensões de domínio. Assim, Hobbes critica os teólogos e clérigos que negavam a razão e a ciência e controlavam as consciências dos homens, e contra isso ele apresenta argumentos baseados tanto na filosofia civil quanto nas próprias nas Escrituras, além de valer-se de várias técnicas da Retórica para persuadir seus leitores, principalmente no Leviatã, onde chega a ser agressivo com os teólogos, como se estes de nada soubessem. Mas sobre isso falaremos em outro texto, se Deus permitir.

[15] Leviatã, 2. ed., Os Pensadores, 1979, Cap. XII, p. 65
[16] Idem, p.66.
[17] Hobbes, Os Elementos da Lei Natural e Política: I,11,2.
[18] Sobre o Corpo. Parte I: Computação ou Lógica, p. 17. Trad. e Notas de José Oscar de Almeida Marques. Clássicos da Filosofia: Cadernos de Tradução, 12. IFCH/UNICAMP, 2005
[19] Como profundo conhecedor da Bíblia, Hobbes certamente conhecia o texto do Segundo Isaías que diz: “Verdadeiramente, tu és Deus misterioso, ó Deus de Israel, ó Salvador” (Is 45:15), onde misterioso pode ser traduzido por “que te escondes”.
[20] Leviatã, op. cit., Cap. III, p. 19.
[21] Idem, ibidem.
[22] Leviatã, op. cit., Cap. XII, p. 66
[23] Idem, p. 71
[24] Idem, p. 67
[25] Idem, p. 67-68
[26] Leviatã, Cap. XXXII, p. 225.

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

A Reforma, as lutas político-religiosoas e o contexto do pensamento de Hobbes

Dedico este simples trabalho aos Profs. Gerson Correia de Lacerda e Eduardo Galasso Faria, que me ensinaram a amar a Reforma e nossas origens.

A História da Igreja e da Política passou por alternâncias interessantes: em Roma, de perseguida a Igreja passa a ser parceira do domínio da Constantino. Depois passou a interferir na Política, tendo o Bispo de Roma, chamado de Metropolitano, grande poder, e até superior ao de alguns imperadores. Em Roma o Sumo Pontífice era César, depois o título passou a ser usado pelo Papa, como se a Religião estivesse acima da Política, supondo-se que o Reino de Deus está acima do poder civil, o que Hobbes desmascara.

De forma impressionante essa questão das investiduras se repetiu na Inglaterra do Séc. XVII, mas ali a Religião perdeu a sua autonomia, caindo nas mãos de Henrique VIII e, depois, do Parlamento, que veio a executar Carlos I, entregando a Coroa ao Exército, comandado por Cromwell, ficando a Religião desde Henrique VIII, sob o controle do Estado.

A doutrina de Hobbes da submissão da religião ao soberano civil é clara, mantendo o princípio da não-contradição em relação ao conceito e de soberania e, ao mesmo tempo, um princípio da fé apostólica, o de só obedecer ao Estado ou a qualquer autoridade, mesmo a religiosa, caso elas nada ordenassem contra os mandamentos divinos.

Hobbes também afirma que é difícil saber o que Deus realmente disse, porém reconhece, ao mesmo tempo, os critérios adotados por Moisés, e admite o Cânon bíblico da Igreja de seu país, isto é, a King James Version da Bíblia, e demonstrando submissão à autoridade da Igreja Anglicana, reconhece o próprio valor dos livros apócrifos para falar da formação do Cânon do Antigo Testamento.

Pela paz civil, afirma a submissão dos intérpretes da Bíblia ao Estado. Isso confere ao seu pensamento um caráter ideológico, mas no Séc. XX Ricoeur veio a afirmar que a coesão social tem um alto preço. Comparando essa afirmação com o pensamento de Hobbes podemos dizer que esse alto preço chega ao ponto de a exegese e da pregação serem controladas pelo Estado, pois Hobbes afirma que uma doutrina, mesmo que seja verdadeira, não deverá ser ensinada, no entanto, se prejudicar a paz civil, a qual é sua grande bandeira.

Perseguições políticas e religiosas na Inglaterra, nos séculos XVI e XVII podem ser sinônimas: assim como se condenam bispos católicos à morte, prendem-se filósofos como Francis Bacon e escritores como John Bunyan e é óbvio que Hobbes argumenta no De Cive, no Leviathan e no Behemoth em favor da obediência ao poder absoluto com um objetivo claro: a paz civil. E isso é feito de forma concisa e profunda no opúsculo Sobre a Heresia e as formas de seu castigo, o qual faz uma abordagem dos significados e heresia desde a Grécia Antiga, mostrando que novas doutrinas filosóficas eram consideradas heresias, lembrando que a Igreja Primitiva adotava uma atitude pastoral com os discordantes, procurando convencê-los pacificamente sobre o credo cristão, inclusive citando, ao final da obra, o texto da Segunda Epístola a Timóteo, que lhe serve de corolário em relação ao papel da Igreja face às divergências teológicas. São palavras de Hobbes:
“Na maioria das vezes os homens são tão agressivos nas disputas, quando seu conhecimento ou poder está em questão, que eles nunca pensam nas leis, mas assim que são ofendidos, logo clamam, crucifica-o; esquecendo-se do que S. Paulo disse (2 Tim. 2, 24-25) mesmo nos casos daqueles que insistem no erro: é necessário que o servo do Senhor não viva a contender e sim deve ser brando para com todos, apto para instruir, paciente; disciplinando com mansidão os que se opõem, na expectativa de que Deus lhes conceda o arrependimento para conhecerem a verdade”. (An Historical Narration Concerning Heresy, and the Punishment Thereof).

As raízes da Igreja na Inglaterra datam dos tempos em que os romanos tinham domínio sobre essa terra. Há registros de antigos historiadores sobre a existência de uma no III século na área que atualmente é a Inglaterra. Seus primeiros membros inglesa foram pregadores que espalharam o evangelho também em outras partes das Ilhas Britânicas, onde hoje se localizam o País de Gales, a Escócia e a Irlanda. Com as invasões dos Anglos e Saxões pagãos muitas das instituições da Igreja foram destruídas. A Igreja céltica que sobreviveu desenvolveu práticas religiosas diferenciadas das primeiras comunidades. O Papa Gregório encarregou Santo Agostinho de Canterbury, em 597, para corrigir isso e alcançar a uniformidade. Ao longo dos séculos seguintes a Igreja da Inglaterra desenvolveu-se a partir dessas raízes e a conquista normanda de 1066 ajudou na padronização. Mas esse desenvolvimento foi marcado por conflitos, o mais famoso exemplo deles foi o assassinato de Thomas Becket por ordem do rei Henrique II.

Se no decorrer da História a Igreja deixou de ser perseguida pelos imperadores romanos, vindo a ser reconhecida pelo Edito de Milão, sob Constantino, em 311, como uma forma de fortalecimento do Estado, a partir do que a Igreja e o Estado passaram a se ajudar mutuamente, por outro lado o Bispo de Roma, com o passar do tempo, passou a interferir em questões de sucessão, de casamentos e de propriedade. No Séc. XVI a Igreja tinha um clero decadente e tanto a população quanto membros do próprio clero desejavam um retorno aos princípios do critianismo, tal como se encontravam registrados na Bíblia, na tradição dos pais apostólicos e dos grandes líderes da Igreja no passado.

Dentre os problemas do clero podem-se destacar, por exemplo, a ignorância de seus membros. De acordo com J. M. Roberts, “em 1500 uitos párocos eram pouco ou menos ignorantes ou supersticiosos do que os seus paroquianos”. Além disso, havia outros problemas, por exemplo: o mau uso do poder em benefício próprio e a sua vida mundana, como o hábito de consumir bebidas alcoólicas, enriquecimento às custas da religião e da interferência em assuntos ciivis, falta de assistência pastoral ao rebanho e amor à vida regalada, em oposição aos padres pobres e devotados aos princípios de uma vida simples, além do sensualismo.

Em caso de renúncia dos membros da Igreja em relação à entrega dos dízimos, como reação os líderes da Igreja os ameaçavam da recusa dos sacramentos e da excomunhão, procurando incutir-lhes a crença de que arderiam no inferno se não pagassem os dízimos. Por fim, talvez a maior demonstração de decadência da Igreja tenha sido a venda do perdão divino: pregadores itinerantes prometiam, através de um documento papal, em troca de uma contribuição para a construção da catedral de S. Pedro, que os fiéis “seriam aliviados de um certo período de tempo no purgatório, lugar onde se acreditava que a alma deveria purgar e se limpar das suas fraquezas antes de passar para o céu”.

Os papas se preocupavam mais com suas funções de príncipes temporais do que com suas funções pastorais, sendo atribuída a um deles a seguinte afirmação: “Já que Deus nos deu o papado, vamos desfrutá-lo”. Mesmo na Inglaterra, no século XVI, o próprio Cardeal Wolsey, “arcebispo de York e favorito de Henrique VIII, nunca visitou a sua sede episcopall até ser mandado para lá em desgraça, depois de perder os favores e o poder”.

Porém, na obra Modo de Confessar-se, publicada em 1520, como parte de sua luta contra o domínio das consciências individuais e da sociedade através da culpa e do monopólio presumido do perdão de pecados pela Igreja, Lutero afirma: “Quem quer se confessar deve confiar, de forma plena, unicamente na clementíssima promissão de Deus, certíssimo de que aquele que prometeu o perdão a quem confessar seus pecados cumprirá fielmente a promessa”.

Lutero insistia que não era o padre local ou o Papa quem perdoava os pecados, mas unicamente Deus, e isso devido à sua fidelidade a si mesmo. Ele simplesmente atribui o perdão a Deus, citando para corroborar sua tese Salmo 25.11, que diz: “Por causa do teu nome, Senhor, perdoa a minha iniquidade”, enfatizando que Deus perdoa por causa de si mesmo, pois destaca do texto citado a expressão: “por causa do teu nome”.

Se a Igreja, por interesse, atribuía o poder de perdoar pecados ao Papa e aos padres, Lutero dizia categoricamente: “O importante é confessar-se como pecador diante de Deus e confiar na promessa do perdão”. Quanto à confissão pessoal, feita a um pastor, Lutero afirma que a ele “se confessam os pecados que pesam na consciência e para os quais se buscam conselho especial e o conforto da palavra do perdão pessoal”. Por fim, contra o medo e o controle dos fiéis através dele pela Igreja afirma Lutero que “a Confissão foi instituída para aquietar, não para perturbar a consciência”.

De acordo com David Cody, na Inglaterra os protestantes permaneceram em princípio como uma minoria, com freqüência perseguida, mas no país havia descontentamento em relação à corrupção presente na Igreja. Tal atitude anticlerical, tanto por parte da população quanto do Parlamento, tornou possível a Henrique VIII, diante da oposição papal, a obtenção da anulação de seu primeiro casamento, com Catarina de Aragão, através do Ato de Supremacia, de 1534, que transferiu a direção da Igreja para a Coroa. Sob Eduardo VI a Igreja inglesa tornou-se protestante, mas sob Maria I, conhecida como a sanguinária, houve uma restauração agressiva do catolicismo, com a condenação de líderes protestantes à fogueira ou ao exílio. Isso levou o povo a associar o Catolicismo à perseguição. Em 1558 Isabel I promoveu a restauração do Protestantismo, bem como a definição da Fé Anglicana através do Ato de Uniformidade, do Ato de Supremacia e dos assim chamados Trinta e Nove Artigos.

Sob Isabel I a Igreja anglicana procurou consolidar sua posição como religião nacional. Com Carlos I houve um afastamento da ala puritana da Igreja. Porém, após a vitória de Cromwell, apoiado por parlamentares que, em sua maioria, eram puritanos, sobre Carlos I, cujos defensores no Parlamento, em sua maioria, eram católicos, nas Guerras Civis ocorridas de 1642 a 1651, a Igreja anglicana sofreu grandes perdas.

A Restauração da Monarquia, sob Carlos II, em 1660, facilitou o restabelecimento da Igreja anglicana, que prosseguiu como Igreja oficial do Estado até a aprovação do Ato de Tolerância em 1690, pelo qual os dissidentes podiam se reunir livremente para celebrar seus cultos.
Mas antes disso a Inglaterra teve a presença de homens ansiosos por uma reforma na instituição eclesiástica. John Wyclif, William Tyndale, John Frith, dentre outros, foram vozes que se levantaram contra a decadência do clero e sua corrupção. Tyndale, primeiro tradutor da Bíblia para o Inglês, acreditava que uma criança e um camponês que manejava um arado entenderiam melhor a Bíblia do que o Papa. Perseguido por seu trabalho de tradução, refugiou-se na Holanda, de onde enviava exemplares do Novo Testamento através de contrabando nos navios mercantes. Não conseguiu completar a tradução, a qual foi acabada por Coverdale posteriormente. Tyndale foi estrangulado e queimado, mas deixou as sementes de uma cultura que, no século XVII, com a tradução autorizada de Jaime I, tinha a Bíblia como inspiração das mais diferentes ideologias.

Em relação a isso, o célebre historiador inglês Christopher Hill afirma que Carlos II, quando assumiu o trono inglês, “fez questão de dizer ao prefeito de Dover que aquilo que ele valorizava, acima de todas as coisas, era a Bíblia que lhe havia sido há pouco presenteada” e mais tarde, quando ganhou uma Bíblia dos ministros londrinos, “ele afirmou que faria da Bíblia uma regra tanto para a sua vida privada quanto para o seu governo”. Mas Hill observa: “Uma afirmação que não era verdadeira, mas politicamente sensata”.

A aceitação da Bíblia como sendo de inspiração divina passou a ser obrigatória através do Ato de Tolerância, de 1689, pelo qual o Parlamento ordenou que aqueles que fossem considerados como dissidentes deveriam fazer um juramento concordando que “as Sagradas Escrituras, tanto no Antigo quanto no Novo Testamento, foram ditadas por inspiração divina”.

Diversas interpretações dos dogmas e da ética cristã surgiram a partir do século XVII na Inglaterra como conseqüência da doutrina luterana do livre-exame das Escrituras. De acordo com Nicholas Tyacke, “nos anos caóticos da guerra civil, um grupo diversificado de seitas não-conformistas apareceu na Inglaterra, para o alarma geral dos puritanos moderados que compunham a maioria dos partidários do Parlamento. Entre os grupos estão os arianos, que rejeitavam a doutrina da Trindade; os dormidores da alma, que negavam a vida após a morte; a família do amor, que não respeitava o sábado; os buscadores, que procuravam uma relação pessoal com Deus; e também os defensores do divórcio, que incluíam entre eles o poeta John Milton”. Faziam parte do Parlamento os defensores da causa realista que, entre si, eram oponentes: os jesuítas de um lado e os arminianos de outro, estes apoiando o anglicanismo da Alta Igreja de William Laud, arcebispo que fora nomeado por Carlos I.

Especificamente sobre o contexto da obra política de Hobbes, o ano de seu nascimento foi o de 1588, quando a até então Invencível Armada chegara à Inglaterra. Hobbes teria nascido prematuramente, devido à ansiedade de sua mãe. Essa expedição, enviada por Felipe II da Espanha, era formada por 130 navios, partindo de Lisboa em fins de abril de 1588, com mais de 3000 canhões, 8000 marinheiros e 19000 soldados, tendo ancorado ao largo de Calais, a uma distância de 3 km da frota inglesa, em julho daquele ano, mas ali chegava com 120 navios, devido a tempestades enfrentadas. Mas apesar de todo o aspecto atuacional do nome da Armada espanhola, os ingleses a venceram.

Hobbes nasce a 5de abril desse ano e Renato Janine Ribeiro afirma que o filósofo nasceu como um irmão gêmeo do medo, tendo carregado esse medo em sua biografia, e levando-o para suas reflexões sobre a paz civil. Hobbes viveu num período de mudanças sociais e políticas, bem como de conflitos de caráter político-religioso na Europa, durante o qual, na Inglaterra sucederam-se no poder: da Dinastia Tudor, Elisabeth I, que reinou de 1558 a 1603. Depois disso, da Dinastia dos Stuarts: James I: (1603-1625) e Charles I (1625-1649). No período da Commonwealth: Oliver Cromwell: (1649-1658) e Richard Cromwell (1658-1659), e com a Restauração dos Stuarts: Charles II: 1660-1685.

Talvez se aplicasse a Hobbes o que Hegel diz da Filosofia, a qual é como a coruja de Minerva, aparece sempre nas épocas de crise. Garaudy afirma que Hegel viu o fim de um mundo e o começo de outro, o mesmo se aplicaria a Hobbes.17 Hobbes presenciou o advento da ciência, a substituição da visão de mundo escolástica pela geometria, pela observação e pela experimentação, os efeitos das doutrinas da Reforma sobre o Papado e os enfrentamentos entre católicos e protestantes “em nome da verdade cristã, se bem que contrariando os seus ditames”.
Entre os anos de 1500 e 1648, de acordo com Mc Neill, em lugar das diversas jurisdições que prevaleceram na Idade Média houve uma concentração de poder em determinados locais da Europa, que passou a repartir-se em Estados controlados por governos centrais, em geral monárquicos. Dentro das fronteiras de cada Estado houve uma radical expansão do poder dos governos, os quais centralizaram decisões que antes eram de caráter local ou externo. Tanto a administração política quanto a religião passaram aos poucos a para os reis e príncipes, mesmo em países que reconheciam o papa como líder da Igreja. Esse foi um importante fator de mudança na sociedade européia.

Outro fator importante para as mudanças sociais e políticas, considerado por Mc Neill até mais contundente, foi a Reforma, que, com seu esforço pela renovação e santificação da Igreja, teve imenso impacto sobre a Política. Seu empenho na mudança da religião com base na Bíblia influenciou a sociedade, e não tardou para que a violência surgisse, apoiada por divergências dogmáticas, o que levou a Europa a convulsionar-se por mais de um século por guerras que tinham como causa aparente as questões relativas à verdade no trato da fé cristã, mas que frequentemente se referiam à religião como parte de um discurso e de uma causa eminentemente políticos.

Como dar uma razão religiosa, por exemplo, para a noite de S. Bartolomeu, cujo número de mortos de huguenotes (calvinistas franceses) pode ter chegado a 3000 apenas em Paris, além de muito mais do que isso em toda a França? Mas, além da chacina de S. Bartolomeu, ocorrida em 24 de agosto de 1572, o historiador Williston Walker afirma que “o partido católico resolveu provocar a guerra. Em 1o de março de 1562 o duque de Guise, em caminho para Paris com suas tropas, permitiu que elas atacassem uma grande congregação huguenote em Vassy (uma vila murada em Champagne) na hora do culto. Foram mortos ou feridos bem mais de cem huguenotes”. Como afirma J. M. Roberts, “a religião não foi a única explicação para as chamadas ´guerras religiosas´ que devastaram grande parte da Europa entre 1550 e 1648”.

O mesmo autor afirma que “por toda parte onde a Europa fora católica houve por mais de um século lutas políticas, envenenadas pela religião” e que “às vezes, como na França, o que realmente acontecia era uma luta pelo domínio entre grandes famílias aristocráticas identificadas com diferentes partidos religiosos”. E acrescenta que “um representante de uma família protestante chegou ao trono – como Henrique IV – mas para isso se converteu ao catolicismo”.

Por outro lado, nos Países Baixos, sob o domínio espanhol, as províncias do sul preferiram continuar católicas, enquanto as do norte, mesmo com grande população católica, se identificaram com o protestantismo.

E na Alemanha a Guerra dos Trinta Anos, de 1618 a 1648, entre protestantes e católicos, “as questões religiosas muitas vezes se perderam de vista na política e nos massacres... os exércitos marchavam de um lado para outro na Alemanha, deixando um rastro de miséria, doença e fome. Algumas áreas foram virtualmente despovoadas e cidades antes prósperas desapareceram”. É difícil acreditar, com base nas doutrinas apaixonadas da Reforma atiçada pelas 95 Teses de Lutero, que essa guerra tenha se iniciado, verdadeiramente, como registra Walker, quando “um grupo de nobres protestantes insatisfeitos lançou os dois regentes católicos, que representavam o ausente Matias (que foi rei de 1611-19) de por uma alta janela do castelo Hradczany, em Praga. Tal fato – conhecido como Defenestração de Praga – levou a Boêmia a se revoltar, e começou a guerra...”.

Com o Tratado de Paz de Westfália, em 1648, houve a inauguração de uma nova era, na qual as discussões sobre comércio e território passaram a ser vistas com mais importância do que as rivalidades religiosas. Na segunda metade do século XVII a maioria dos Estados europeus aceitava apenas uma religião dominante, com razoável tolerância em alguns, como na Inglaterra e nas Províncias Unidas dos Países Baixos.

Outro fato importante a se observar é que, nessa época, apesar da oposição entre católicos e protestantes, casamentos eram feitos entre membros das famílias reais de países de confissão de fé tão conflitantes como o protestantismo e o catolicismo, visando garantias políticas, as quais nem sempre eram confirmadas pelos fatos. Uma mulher era escolhida para esposa de um herdeiro do trono, ou de um rei em exercício, como uma aposta política. É o que podemos verificar na seguinte afirmação do historiador Willinston Walker em relação à Escócia: “Ainda que o rei Tiago V fosse sobrinho de Henrique VIII, e seu neto Tiago VI se tornasse Tiago I imperador da Inglaterra em 1603 e unisse as duas coroas após a morte de Isabel, Tiago V lançou sua sorte com a França, casando-se sucessivamente com uma filha de Francisco I e, depois que ela morreu, com Maria de Lorena, da poderosa família francesa dos Guise. Deste último consórcio, tão importante na história do país, nasceu Maria, ´rainha dos escoceses´”.
Não é sem razão que Thomas Hobbes se dedica ao estudo da origem racional e passional do Estado, da obediência civil e da submissão da esfera religiosa à política, visando através da Filosofia resolver as discórdias civis, provocadas tanto por disputas próprias da Política quanto pelas disputas teológicas e pela interferência da Igreja, tanto a católica quanto a reformada, na área da Política.

Bibliografia
CODY, David. The Church of England (The Anglican Church) http://www.victorianweb.org/
HOBBES. Concerning Heresy and the punishment thereof. Tradução de Janete Maria Rosa e Isaar Soares de Carvalho (inédito).
HILL, Christopher. A Bíblia Inglesa e as Revoluções do Século XVII. Trad. de Cynthia Marques. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira: 2003.
LATOURETTE, Kenneth Scott. Historia del Cristianismo. El Paso, Texas: Casa Bautista de Publicaciones, 1983
LUTERO, Martinho. O Programa da Reforma, Escritos de 1520. S. Leopoldo: Sinodal, 1989.
MC NEILL, William Hardy. História Universal: um estudo comparado das civilizações. (A World History). Trad. de Leonel Vallandro. Porto Alegre: Globo, S. Paulo: Edusp, 1972.
ROBERTS, J. M. O Livro de Ouro da História do Mundo. (The Shorter History of the World). Trad. de Laura Alves e Aurélio Rebello: Rio de Janeiro: Ediouro, 2000.
WALKER, Williston. História da Igreja Cristã, 3. ed. S. Paulo: Aste, 2005.
A Cronologia dos monarcas ingleses (De 802 em diante: www.britainexpress.com/History/monarchs)
Grandes acontecimentos que transformaram o mundo. (When, where, why & how happened, Londres: 1993). Rio de Janeiro: Reader´s Digest Brasil, 2000.
Poderes da Coroa. 1600-1700: Guerra Civil na Inglaterra. Tradução de Pedro Maia Soares. Rio de Janeiro: Time-Life: Abril Livros, 1992. (Série História em Revista).

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

O Problema da Ideologia em Paul Ricoeur

O Problema da Ideologia em Paul Ricoeur

Este é um trecho de minha Tese de Mestrado em Filosofia, defendida na Unicamp, em 1998, sob a orientação de Michel Debrun e Fausto Castilho, a quem dedico o texto.

Talvez poucos sejam os temas de pesquisa que resistam tanto à objetividade quanto este. De acordo com Mc Lellan, “a história do conceito de ideologia é a história de várias tentativas para encontrar um ponto firme fora da esfera do discurso ideológico, um local fixo de onde possamos observar os mecanismos da ideologia em ação”. [1]
Mc Lellan considera Francis Bacon um dos precursores mais diretos dos estudiosos da Ideologia. No Novum Organum (1620), Bacon esboça um estudo da sociedade baseado na observação. Procurava atingir o verdadeiro saber e, para tanto, elaborou uma teoria do conhecimento que demonstrava os erros intrínsecos ao saber de sua época. As concepções erradas e irracionais, que são obstáculos ao advento da ciência, foram por ele chamadas de “ídolos” e divididos em quatro espécies: idola tribus, idola specus, idola fori e idola theatri. Pelos primeiros (idola tribus) referia-se aos erros causados pela natureza humana, pelo “antropocentrismo ingênito” que submete todas as coisas à medida do homem.[2] Pelos segundos (idola specus) referia-se aos erros causados pela centralização do indivíduo em si mesmo. São erros decorrentes de uma idiossincrasia ou de um solipsismo epistemológico: a marca do indivíduo é colocada no processo e no resultado do conhecimento. Pelos terceiros (idola fori) entendia aqueles erros decorrentes das falsas impressões causadas pelas palavras, da linguagem que se perde em equívocos e expressões inadequadas, produzindo discursos obscuros e sem rigor. [3] Enfim, através dos idola theatri Bacon referia-se aos aparentes sistemas filosóficos ou do saber que não passavam de peças fabricadas que adquiriam renome simplesmente pela fascinação que provocavam, como as personagens construídas num jogo literário e artístico que atuam sobre a platéia como se fossem reais.
Bacon afirma que muitos foram os que, pelo desejo de criar sistemas filosóficos, impediram a chegada da verdadeira ciência. De acordo com sua análise, “o entendimento humano é, dessa forma, um espelho falso, desfigurando as coisas pelas formas irregulares de sua própria natureza”. [4] Seu objetivo foi o de reformar a razão natural através do método.
Apesar de sua análise do entendimento humano servir de precursora dos conceitos de “ideologia”, tal palavra foi utilizada pela primeira vez apenas em 1801, por Destutt de Tracy, na obra Projeto de Elementos de Ideologia, cujo objetivo definido era “o estudo das idéias – no sentido geral dos fatos da consciência – das suas características, das suas leis, da sua relação com os signos que as representam e sobretudo da sua origem”.[5]
Paul Ricoeur considera positiva a acepção da palavra “ideologia” em relação a De Tracy, ao afirmar:
“Mencionaré sólo de paso una acepción anterior y más positiva dela palabra ‘ideología’, puesto que dicha acepción há desaparecido del escenario filosófico. Este sentido del término derivaba de una escuela de pensamiento de la filosofía francesa del siglo XVIII, de unos hombres que se llamaban ellos mismos idéologues, abogados de una teoría de las ideas. La suya era una especie de filosofía semantica que declaraba que la filosofía tiene de ver no con las cosas, no con la realidad, sino con las ideas”. [6]
Ele observa que o interesse por essa escola, se ainda existir, talvez se deva ao sentido depreciativo que a ela foi dado:
“Como opositores del imperio francés napoleónico, los miembros de esta escuela fueron tratados de idéologues. Por eso, la connotación negativa del término puede rastrearse a la época de Napoleón cuando por primera vez fue aplicado a este grupo de filósofos”.[7]
E indicando as características controvertidas da nomeação de alguém como ideólogo, acrescenta:
“Esto tal vez nos advierte que siempre hay en nosotros algún Napoleón que designa a los demás como idéologues. Posiblemente haya siempre alguna pretensión al poder en la acusación de ideología”. [8]
Ricoeur procura evitar o que chama de “múltiplas armadilhas” quando se trata do tema da ideologia. Tais armadilhas são de dois tipos. Na definição inicial do fenômeno já se coloca a primeira delas, que “consiste em aceitarmos como evidente uma análise em termos de classes socais”.[9] Devido à marca do marxismo em relação ao problema da ideologia, parece natural que ela seja vista nesses termos, “embora tenha sido Napoleão quem, pela primeira vez, fez desse termo uma arma de combate (o que ... talvez não deva ser definitivamente esquecido)”.[10] Ricoeur rejeita a análise em termos de classes sociais porque considera que isto consiste em “fechar-se ao mesmo tempo numa polêmica estéril pró ou contra o marxismo”. Sua proposta é a de um “pensamento a-marxista”, de um cruzamento de Marx, sem segui-lo ou combatê-lo, e sem sofrer intimidação de quem quer que seja.[11]
Para evitar esta primeira armadilha é preciso evitar uma segunda, “que consiste em definir, inicialmente, a ideologia por sua função de justificação, não somente dos interesses de uma classe, mas de uma classe dominante”. Deve-se evitar o fascínio que o problema da dominação exerce e considerar o problema mais amplo da integração social, “de que a dominação é uma dimensão, e não a condição única e essencial”.[12] Se a ideologia for interpretada simplesmente como uma função da dominação, então se admitirá também, “sem crítica”, que ela é “um fenômeno essencialmente negativo, primo do erro e da mentira, irmão da ilusão”. Ricoeur critica o fato de na literatura contemporânea sobre o tema nem se submeter ao exame “a idéia que já se tornou natural de que a ideologia é um representação falsa cuja função é dissimular a pertença dos indivíduos, professada por um indivíduo ou por um grupo, e de que estes têm interesse em não reconhecer o fato”.[13]
Estes primeiros questionamentos de Ricoeur são complementados pela pergunta a respeito do “estatuto epistemológico da própria teoria das ideologias”. E aqui também há armadilhas, por exemplo a admissão freqüente de que “o homem da suspeita está isento da tara que ele denuncia: a ideologia é o pensamento de meu adversário; é o pensamento do outro. Ele não sabe, eu, porém, sei”. [14] Esse tipo de afirmação é próprio de quem pretende sustentar “um ponto de vista sobre a ação que seja capaz de escapar à condição ideológica do conhecimento engajado na práxis. A essa pretensão acrescenta-se uma outra: não somente há um lugar não–ideológico, mas este lugar é o de uma ciência, semelhante à de Euclides... Galileu e Newton...”[15]
Tal pretensão, no entanto “particularmente viva nos mais eleatas dos marxistas, é exatamente a que Aristóteles condenava entre os platônicos de seu tempo, em matéria de ética e de política, à qual opunha o pluralismo dos métodos e o dos graus de rigor e de verdade”.[16] Esse pluralismo pode ser justificado também com razões novas, “razões que se devem a toda reflexão moderna sobre a condição propriamente histórica da compreensão da história”. Isto implica que “a natureza da relação entre ciência e ideologia depende tanto do sentido que possamos dar à noção de ciência nas matérias práticas e políticas quanto do que possamos dar à própria ideologia”.[17]
A verdade é que “não há ciência capaz de arrebatar-se à condição ideológica do saber prático”.[18] No entanto, não se deve renunciar pura e simplesmente à oposição entre ciência e ideologia. Ricoeur procura reformular esta questão de forma a situar a crítica das ideologias “no contexto de uma interpretação tendo consciência de ser historicamente situada, mas que se esforça por introduzir, tanto quanto pode, um fator de distanciamento no trabalho que não cessamos de retomar para reinterpretar nossas heranças culturais”. [19]A análise de ciência e ideologia terá como horizonte, assim, “somente a procura de uma relação intimamente dialética” entre ambas, o que é “compatível com o grau de verdade ao qual ... é possível aspirar, como dizia Aristóteles, nas coisas práticas e políticas”. [20]
Dessa forma, Ricoeur procurará adotar uma descrição do fenômeno ideológico que “não será, de início, o de uma análise em termos de classes sociais e de classe dominante”. Sua intenção é “chegar ao conceito de ideologia que corresponda a essa análise, mais do que partir dela”. Este é seu modo de “cruzar o marxismo”.[21]
A ideologia é explicada em relação às suas funções, a saber: 1) função geral; 2) função de dominação; 3) função de deformação.
1) A função geral da ideologia é a da integração, e está ligada à necessidade que um grupo social tem de “conferir-se uma imagem de si mesmo, de representar-se, no sentido teatral do termo, de representar e encenar”.[22] O ponto de partida de Ricoeur para a definição dessa função geral encontra-se na “análise weberiana do conceito de ação social e de relação social”, de acordo com a qual “há ação social quando o comportamento humano é significante para os agentes individuais e quando o comportamento de um é orientado em função do comportamento de outro.
A idéia de relação social acrescenta a esse duplo fenômeno de significação e de orientação mútua a idéia de uma estabilidade e de uma previsibilidade de um sistema de significações. Pois bem, é nesse nível do caráter significante, mutuamente orientado e socialmente integrado da ação, que o fenômeno ideológico aparece em toda a sua originalidade”. [23]
O primeiro traço característico da ideologia, assim, é a representação. A relação que uma comunidade histórica mantém com o ato fundador que a instaurou é considerada “primitiva” por Jacques Ellul: “a ideologia é função da distância que separa a memória social de um acontecimento que, no entanto, trata-se de repetir”.[24] Ela desempenha não só o papel de “difundir a convicção para além do círculo dos pais fundadores, para convertê-la num credo de todo o povo, mas também o de perpetuar sua energia inicial para além do período de efervescência”. Nessa distância “intervêm as imagens e as representações”. As interpretações são integrantes do processo ideológico, é “sempre numa interpretação que o modela retroativamente, mediante uma representação de si mesmo, que um ato de fundação pode ser retomado e atualizado. Talvez não haja grupo social sem essa relação indireta com seu próprio advento”.
Dessa forma, é inevitável que o fenômeno ideológico comece demasiadamante cedo, “porque, com a domesticação, pela lembrança, começa o consenso, mas também se iniciam a convenção e a racionalização”. Isto leva a ideologia a deixar de desempenhar o papel de mobilizadora para tornar-se justificadora, isto é, ela “só continua sendo mobilizadora com a condição de ser justificadora”. [25]
Pode-se com facilidade perceber o papel da linguagem e do credo no processo ideológico assim descrito. O credo é uma conseqüência da domesticação, que vem pela repetição da narrativa dos atos fundadores e pela adoção de determinadas práticas nas relações sociais.
Na definição da função geral, Ricoeur expõe ainda mais quatro traços da ideologia. O segundo traço é seu dinamismo: de justificadora ela passa a ser mobilizadora, e “só continua sendo mobilizadora com a condição de ser justificadora”. A ideologia, assim, “depende daquilo que poderíamos chamar de uma teoria da motivação social”. Comparada aos projetos individuais, ela é, para a práxis social, “um projeto, um motivo” e como tal “justifica e compromete”. Na ideologia argumenta-se que “o grupo que a professa tem razão de ser o que é”. [26] Apesar disso, Ricoeur afirma que “não se deve tirar daí, de modo apressado, um argumento contra a ideologia: seu papel mediador permanece insubstituível”. A ideologia, por ser “justificação e projeto, é sempre mais que um reflexo”. Dessa forma, tanto a origem das comunidades históricas quanto as ações instituídas em relação aos empreendimentos e instituições recebem dela justificação e motivação.[27]
O terceiro traço da ideologia relaciona-se com seu dinamismo. É para preservá-lo que “toda ideologia é simplificadora e esquemática”. E isto se constitui em seu terceiro traço. A ideologia “é ... um código para se dar uma visão de conjunto, não somente do grupo, mas da história e, em última instância, do mundo”. Este seu caráter codificado “é inerente à sua função justificadora”.[28]
A ideologia mantém sua capacidade de transformação – e nisto reside seu dinamismo – “com a condição de que as idéias que veicula tornem-se opiniões, de que o pensamento perca rigor para aumentar sua eficácia”. A ideologia é apresentada como se apenas ela “pudesse mediatizar não somente a memória dos atos fundadores, mas os próprios sistemas de pensamento. É dessa forma que “tudo pode tornar-se ideológico: ética, religião, filosofia”. É justamente nessa “mutação de um sistema de pensamento em sistema de crença” que reside o fenômeno ideológico. [29]
A presença da linguagem na ideologia assim definida pode ser verificada nos vocabulários, nos rituais, nos estereótipos, nas “denominações corretas”. Esta presença negativa da linguagem faz da ideologia o “reino dos ismos”.
Neste terceiro traço da ideologia observa-se seu nível epistemológico. Ela situa-se no reino da opinião, na dóxa. Se for adotada a terminologia freudiana, a ideologia corresponderá ao momento da racionalização. Suas formas de expressão preferidas serão, por isso, as máximas, os slogans e as fórmulas lapidares. Devido a isso, “nada é mais próximo da fórmula retórica – arte do provável e do persuasivo – que a ideologia”. Tal aproximação “sugere que a coesão social não pode ser assegurada a não ser que seja ultrapassado o optimum dóxico que corresponde ao nível cultural médio do grupo em questão”. No entanto, Ricoeur observa que mesmo este traço da ideologia não nos deve levar a denunciá-la como fraudulenta ou patológica: “esse esquematismo, essa idealização, essa retórica, são o preço a ser pago pela eficácia social das idéias”. [30]
O quarto traço da ideologia consiste no predomínio da operacionalidade mais que da tematização, isto é, “ela opera atrás de nós, mais do que a possuímos como um tema diante de nossos olhos”. Nossa capacidade de interpretação da ideologia é reduzida: seu “código interpretativo ... é mais algo em que os homens habitam e pensam do que uma concepção que possam expressar”. Pensamos a partir dela “mais do que podemos pensar sobre ela”. É dela que procede a “possibilidade de dissimulação, de distorção, que se vincula, desde Marx, à idéia de imagem invertida de nossa própria posição na sociedade”.[31]

[1] David Mc Lellan,.A Ideologia, 1987, p. 13.
[2]Jean-Pierre Chretien-Goni, in: D. Huisman (ed.), Dictionnaire des Philosophes, 1984, p. 198.
[3] De acordo com Cassirer, são estes os que possibilitam os mitos políticos.
[4] Jean-Pierre Chretien-Goni, Op. e loc.cit.
[5] Projeto de Elementos de Ideologia (1801), apud Lallande, Vocabulário Técnico e Crítico da Filosofia. Porto, Rés, s.d., p. 601.
[6] Ricoeur, P., Ideología y Utopia., 1989, p. 47.
[7] Idem.
[8]Idem.
[9] Idem, p. 64.
[10] Idem
[11] Idem.
[12] Idem, p. 65.
[13] Idem, ibidem.
[14] Idem.
[15] Idem.
[16] Idem, p.65s.
[17] Idem, p. 66.
[18] Idem, ibidem.
[19] Idem.
[20] Idem, p. 66.
[21] Idem, p. 67.
[22] Idem, p. 68.
[23] Idem, p. 67.
[24] “Le rôle mediateur de l’ideologie”, in: Demythisation et Idéologie, Paris, Aubier, 1973 (Ricoeur, p. 68).
[25] P. Ricoeur, op. cit., p. 68.
[26] Idem.
[27] Idem, p. 69.
[28] Idem, ibidem.
[29] Idem.
[30] Idem, p. 69s.
[31] Idem, p. 70. (Grifos de Ricoeur).

sexta-feira, 22 de julho de 2011

As Leis Civis e o Poder Eclesiástico em Hobbes

Em Hobbes está presente, acima de tudo, o direito do cidadão e a necessidade de sua garantia pelo Estado, tanto que “a obrigação dos súditos dura enquanto, e apenas enquanto, dura também o poder mediante o qual ele é capaz de protegê-los”. (Leviatã, Cap. XXI).

É isso que o leva a afirmar que “o direito que por natureza os homens têm de defender-se a si mesmos não pode ser abandonado através de pacto algum”. Isso se refere, naturalmente, aos alegados pactos com Deus, os quais Hobbes afirma serem impossíveis: “Homem algum pode firmar convenções com Deus, ou obrigar-se para com ele por meio de um voto, exceto na medida em que, conforme dizem as Sagradas Escrituras, Deus pôs em seu lugar certos homens, que, portanto, têm autoridade para aceitar tais votos em seu nome. (Leviatã, Cap. II).

Sobre a natureza da soberania, Hobbes afirma que ela é “imortal, na intenção daqueles que a criaram”, porém “encontra-se, por sua própria natureza, sujeita à morte violenta através da guerra exterior”, bem como devido às paixões e à ignorância do homem e, ainda, pode partir da própria instituição, pois nela pode ser lançado “grande número de sementes de mortalidade, através da discórdia intestina”.
Hobbes utiliza termos da psicologia antiga e da pneumatologia ao afirmar, em relação à soberania e à obediência civil, que “a soberania é a alma do Estado, e uma vez separada do corpo os membros deixam de receber dela seu movimento”. (Leviatã, Cap. XXI).

A obediência tem como fim, não o despotismo, mas a proteção dos súditos:
“O fim da obediência é a proteção”. (Idem).

Ao examinar as leis de natureza, Hobbes também demonstra um enfrentamento da instituição eclesiástica, e isso se mostra com evidência na afirma cão de que “ninguém pode fazer leis senão o Estado, pois nossa sujeição é unicamente para com o Estado”. (Leviatã, Cap. XXVI).

Ao falar da aplicação da lei, observa tanto seu caráter geral quanto particular:
“Algumas leis são dirigidas a todos os súditos em geral, algumas só a determinadas províncias, outras a determinadas vocações e outras a determinadas pessoas”. (Idem).

Possivelmente ele se refira ao exercício das vocações sacerdotais, cujos profissionais também estão sujeitos ao poder civil. Isso pode ser relacionado, também, ao que ele afirma, ao mesmo tempo, sobre o ensino das doutrinas religiosas, isto é, ele era contrário à sujeição de toda pessoa que ensinasse as Escrituras e o Evangelho à instituição eclesiástica. Para Hobbes, a pregação e o ensino do Evangelho e das Escrituras não deveriam ser restritos aos ordenados, mas, desde que o Estado os permitisse, poderiam ser feitos por qualquer cidadão, pois do contrário a Igreja estaria negando uma liberdade legítima, isto é, concedida pelo poder civil.

Observe-se que, de acordo com seu pensamento nenhuma doutrina contrária à paz civil deverá ser ensinada. Hobbes, ao contrário de ser absolutista nesse caso, quando submete a Religião ao poder civil está contribuindo para a tolerância religiosa.

Fica evidente também que é o Estado, por ter o poder de tornar a lei válida, a qual, por isso, é lei civil, quem determina o que é justo e injusto, não outra instituição qualquer, “não havendo nada que não seja considerado injusto e não seja contrário a alguma lei” e também que a sujeição é ao Estado unicamente, pois “ninguém pode fazer leis a não ser o Estado, pois nossa sujeição é unicamente ao Estado”. (Idem).

Nesse caso, Hobbes não só refuta a obediência à Igreja em lugar da obediência ao Estado, como também às palavras reveladas e ao próprio Deus, pois para Hobbes o tempo da profecia ficou para trás e é impossível confirmar o que Deus de fato disse e quando o fez. É o Estado laico de Hobbes, falível, um deus mortal, abaixo do Deus imortal, porém, é ele quem que resolve os problemas da paz civil, da cidade do homem.

Hobbes relembra que o Estado é o poder que costuma defender os homens de seus inimigos, proteger a sua indústria e garantir a justiça quando eles são ofendidos. Porém, observa que apesar disso há homens que, por ignorância e ousadia, não respeitam esse poder, porém o Estado, “tendo sido constituído pelo consentimento de todos deve considerar-se que é suficientemente conhecido por todos”. (Idem).

Ao evocar as leis de natureza afirma que esse poder não deve ser enfraquecido por ninguém, pois sua proteção “todos pediram ou conscientemente aceitaram contra outros”. (Idem). Sem dúvida, trata-se de um pensamento cujo objetivo é a pacificação, a qual é impossível sem a obediência.

Para que se alcance esse objetivo, as doutrinas contrárias à paz não deveriam ser ensinadas. Dessa forma, o critério da verdade de uma doutrina é a sua capacidade de pacificação. Assim, Hobbes afirma: “Embora em matéria de doutrina não se deva olhar a nada senão à verdade, nada se opõe à regulação da mesma em função da paz. Pois uma doutrina contrária à paz não pode ser verdadeira”. (Leviatã, Cap. XVIII).

No Cap. XXXI do Leviatã, intitulado “Do Reino de Deus por natureza”, Hobbes voltará a tratar da obediência, relembrando as seguintes teses:
A)Na condição de simples natureza há absoluta liberdade, não há súdito nem soberano, “é anarquia e condição de guerra”;
B)As leis de natureza são os preceitos pelos quais os homens são levados a evitar essa condição;
C)“Um Estado sem soberano não passa de uma palavra sem substância e não pode permanecer”;
D)E por fim, como corolário, que “os súditos devem aos soberanos obediência simples em todas as coisas... de onde se segue que sua obediência não é incompatível com a lei de Deus.

E para que o problema da obediência fosse examinado de forma completa, Hobbes exporá sobre o que se entende por lei de Deus, pois sem esse conhecimento o homem de seu tempo não poderia saber se o que o poder civil lhe ordenava era contrário à lei de Deus, ficando assim esse homem num grande dilema, assim definido pelo filósofo:
“Ou por uma excessiva obediência civil ofende a Majestade Divina, ou com receio de ofender a Deus transgride os mandamentos do Estado”. (Leviatã, Cap. XXXI).

E seu texto é tão coerente que no Cap. I do Leviatã, intitulado “Da Sensação”, ele já afirmara, relacionando religião e obediência civil:
“Se desaparecesse esse temor supersticioso dos espíritos, e com ele os prognósticos tirados dos sonhos, as falsas profecias, e muitas outras coisas dele decorrentes, graças às quais pessoas ambiciosas e astutas abusam da credulidade da gente simples, os homens estariam muito mais bem preparados do que agora para a obediência civil”.

sábado, 11 de junho de 2011

Teodiceia: A Justificação de Deus a partir da Filosofia e das Escrituras

Tendo lido a Meditação relativa à Quaresma, do ilustre teólogo Aharon Sapsezian, no Jornal O Estandarte, publicado em Abril de 2011, exponho a seguir breves considerações sobre parte de seus conceitos.

O autor trabalha com questões da área de Teodiceia, aquela parte da Filosofia que trata especificamente da natureza de Deus, da origem e da natureza do mal, da liberdade humana, do pecado e da permanente bondade e justiça de Deus, mesmo diante das catástrofes da natureza e do sofrimento humano. O termo Teodiceia, inspirado em Romanos 3:5, onde Paulo usa o termo “justiça de Deus”, foi criado por Leibniz em 1710 e intitula uma de suas obras: Teodiceia: Ensaio sobre a bondade de Deus, a liberdade do homem e a origem do mal.

Quanto ao artigo citado, inicialmente seu autor cita a obra A Criação, de Haydn, e depois fala, em tom existencial, sobre a incompreensibilidade da perfeição da Criação divina, comparando a obra da Criação narrada no Gênesis, e venerada na obra de Haydn, com várias catástrofes naturais que atingem o homem. Cita Voltaire, pensador francês que deu grande contribuição à Filosofia e à História, mas apesar de nalgumas obras o filósofo ser mais rigoroso, noutras escreve em forma polêmica, primando mais pela provocação do que pelo conceito. São desse tipo suas críticas a Deus citadas por Sapsezian. O filósofo faz um raciocínio em forma de dilema, modo de pensar que, qualquer que seja a premissa, sempre concluirá da mesma forma. Nesse caso, o raciocínio citado conclui sempre pelo sarcasmo e pelo desrespeito de Voltaire à santidade, à soberania e à providência de Deus. Seria interessante lembrar que sobre o terremoto de Lisboa, o filósofo Jean-Jacques Rousseau também fez seus juízos, defendendo a Providência divina e dizendo que os homens não deveriam edificar uma cidade numa região onde ocorrem terremotos.

Sapsezian comenta a narrativa do Gênesis dizendo que as catástrofes naturais são explicadas ali a partir do fato de o homem ter comido do fruto de uma árvore do jardim do qual não deveria comer, e cujo dono, que era muito iracundo, dali o expulsou. Porém, observamos que o texto bíblico não diz que Deus era o dono do jardim, mas sim o Senhor da Criação, pois já no início do Gênesis se usam os termos Senhor e Senhor Deus (Almeida, Revista e Atualizada). O homem, portanto, desobedeceu ao Senhor, que o criou e lhe deu domínio sobre a criação, mas com limites que deveriam ser respeitados, e não a um jardineiro, que não seria capaz de criá-lo. E reduzir Deus a um jardineiro não seria estranho à lavra de Voltaire.

Sapsezian duvida da perfeição da Criação afirmada na narrativa do Gênesis, mencionando o Tsunami ocorrido no Japão e um grande terremoto que abalou sua terra natal, já marcada por tantas outras formas de sofrimento, negando a perfeição da Criação e, por consequência, do próprio Deus, pois, argumenta que se Ele fez tudo perfeito, por que ocorrem esses fenômenos? E também pergunta: onde estaria Deus quando isso ocorreu? Assume, portanto, o argumento cético de Voltaire.

Mas a Filosofia também tem outros argumentos a nos dar. Na Filosofia Antiga, basta lembrar que Platão afirmava a providência de Deus sobre a natureza e sobre a vida dos homens. Na obra O Pensamento de Platão (Braga: 1967), António Freire afirma: “Acima de tudo, o Deus de Platão é previdente. Não há, na teologia platónica, dogma proposto com mais clareza, nem definido com maior convicção” (p. 114). Nas Leis, Platão afirma que Deus “toma cuidado de todas as coisas e tudo dispôs para a conservação e perfeição do conjunto”. Na mesma obra ele também afirma que Deus é “o princípio, o meio e o fim de todas as coisas. É verdadeiramente a medida de tudo”. Apesar de não apresentar uma solução plenamente satisfatória para o problema do mal, Platão não o atribui, no entanto, a Deus, afirmando na República que “só a Deus se deve atribuir a causa do bem; para o mal, é preciso buscar outra causa, mas que não seja Deus”. (Op. cit., p. 114-115).

Na Filosofia Moderna, Leibniz afirma que “haveria algo a corrigir nas ações de Deus se fosse possível fazer melhor. Como nas matemáticas, quando não há máximo nem mínimo, em resumo, nada haveria a distinguir, tudo é feito de modo igual; ou quando aquilo não é possível, nada é feito: então, pode-se afirmar o mesmo com respeito à sabedoria divina (que não é menos ordenada que as matemáticas) que se não houvesse o melhor (optimum) entre todos os mundos possíveis, Deus não teria produzido”. (Teodiceia, Tese 8). O filósofo também afirma que “se o menor dos males que ocorre no mundo não ocorresse, não mais teríamos este mundo; que, nada se omitindo e tudo se considerando, foi tido o melhor pelo Criador que o escolheu”. (Idem, Tese 9). E ele já sabia que um fenômeno como o Tsunami tem consequências amplas, ao dizer: “O universo, qualquer que seja, é todo da mesma espécie, como um oceano: o menor movimento estende seus efeitos a qualquer distância, muito embora esses efeitos se tornem menos perceptíveis na proporção da distância”. (Idem).

Além disso, façamos agora um retorno à Teodiceia bíblica, isto é, à justificação de Deus nas Escrituras. Como seria salutar lembrar que em lugar de questionarmos a Deus, devemos observar que Isaías diz: “Ai daquele que contende com seu Criador! e não passa de um caco de barro entre outros cacos. Acaso dirá o barro ao que lhe dá forma: Que fazes? ou: A tua obra não tem alça?”. (Is: 45.9).

E naquela que foi definida pelo biblista, Dr. Ariel Finguerman, como “a obra prima sobre o sofrimento humano, o Livro de Jó, observamos que Deus se dirige a Jó, diante de suas dores, angústias e do próprio desejo de que o dia em que nasceu fosse riscado do calendário, mostrando que este fizera discursos humanamente sem sentido. Na verdade, observemos que Deus fez o caminho inverso, foi Ele quem se dirigiu a Jó e o arguiu: “Cinge, pois, os teus lombos como homem, pois eu te perguntarei, e tu me farás saber". Onde estavas tu, quando eu lancei os fundamentos da terra? Dize-mo, se tens entendimento”. (Jó 38:3-4) E depois de ter-lhe exposto longos juízos os quais Jó, como homem, poderia conhecer, posto que Deus lhe falava apelando à sua razão, Jó afirmou: “Sou indigno; que te responderia eu? Ponho a mão na minha boca”. (Jó 40:4-5).

Mas o Livro de Jó mostra ao leitor, desde o começo, que o homem que foi lembrado por Ezequiel como um modelo de piedade e de justiça (Ez 14:14, 20), e por Tiago como um modelo de paciência, desde o começo de suas provações afirmou: “Em tudo isso Jó não pecou, nem atribuiu a Deus falta alguma” (Jó 1:22) e também: “Temos recebido o bem de Deus, e não receberíamos também o mal? Em tudo isso não pecou Jó com os seus lábios” (Jó 2:10). E também no cap. 9 o autor do texto vai familiarizando o leitor com a soberania e a justiça de Deus, com seu poder irresistível, quando Jó afirma: “Na verdade sei que assim é: porque, como pode o homem ser justo para com Deus? Se quiser contender com ele, nem a uma de mil cousas poderá lhe responder... Quem o pode impedir? Quem lhe dirá: que fazes?”. (Jó 9: 2-3, 12).
E talvez seja relevante lembrar que Paulo, citando Isaías, pergunta: “Quem guiou o Espírito do Senhor? ou, como seu conselheiro, o ensinou?”, e também citando o Livro de Jó, que diz: “Quem primeiro me deu a mim, para que eu haja de retribuir-lhe?”, conclui afirmando aos Romanos: “Porque dele e por meio dele e para ele são todas as coisas. A ele, pois, a glória eternamente. Amém”. (Rm 11:34-36, cf. Is 40:13 e Jó 41:11).

Certamente devemos mudar nossos paradigmas convencionais sobre Deus, mas em primeiro lugar, com um retorno às Escrituras, pois Jesus perguntou: “Não provém o vosso erro de não conhecerdes as Escrituras, nem o poder de Deus?”. (Mc 12:24).

Aos meus pais, Epaminondas e Rosa, que diariamente liam as Escrituras aos nossos corações.

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Hobbes, a inerrância e a exclusividade dos sacerdotes na interpretação das Escrituras

A análise feita por Hobbes da história das formas de organização civil de Israel tem por objetivo principal demonstrar que “a autoridade civil e sagrada estavam unidas nos sacerdotes” e que, “embora... até o advento de Nosso Salvador Jesus Cristo... não se possa saber em quem residia a autoridade, é, contudo, claro que naqueles tempos o poder para interpretar a palavra de Deus não estava separado do poder civil supremo”. (Do Cidadão. Trad. de Renato Janine Ribeiro: S. Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 308).

Ao examinar o reino sacerdotal e o reino monárquico, Hobbes escreve contra a infalibilidade ou inerrância dos sacerdotes em relação à interpretação das Escrituras e às objeções que se levantassem contra sua tese de que o poder soberano é quem tem a autoridade para interpretar as Escrituras e, por conseqüência, para designar quem o fará. Ele argumenta que tanto os reis quanto os sacerdotes podem errar, pois todos são mortais:

“Alguém pode objetar aos reis que lhes falta erudição, e por isso raramente têm eles capacidade para interpretar esses livros antigos nos quais está contida a palavra de Deus, e portanto não é razoável que esse ofício de intérprete dependa de sua autoridade. Mas o mesmo poderia ser objetado aos sacerdotes e a todos os mortais: pois podem, todos, errar”. (Idem, p. 307).

Porém, continua o filósofo, os reis têm a autoridade para designar os intérpretes de tais livros. No Leviatã, Hobbes usará um argumento semelhante à ironia sobre o ensino de Geometria usado na obra Do Cidadão, para garantir que o poder civil é o responsável pela educação, bem como estenderá, no Leviatã, o direito ao ensino do Evangelho a pessoas que não fazem parte do magistério eclesiástico ordenado. A ironia sobre os que se recusam a admitir a autoridade dos reis (isto é, do poder soberano) em relação à interpretação das Escrituras e o ensino da Geometria é a seguinte:

“Os que se recusam a reconhecer-lhes essa autoridade, alegando que eles não podem praticar tal ofício em pessoa, é como se dissessem que a autoridade para ensinar a geometria não pode depender dos reis, a não ser que estes mesmos sejam geômetras”. (Idem, p. 216).

Hobbes afirma aceitar como canônicos os livros reconhecidos pela autoridade da Igreja Anglicana e diz que entende “por livros das Sagradas Escrituras aqueles que devem ser o Cânone, quer dizer, as regras da vida cristã” e que “o problema das Escrituras é o problema de saber o que é lei, tanto natural quanto civil, para toda a cristandade”. (Leviatã,Col. Os Pensadores, 2. ed., 1979, Cap. XXXIII, p. 225).

Portanto, o que é canônico é aquilo que dita não só as regras da ética cristã, mas das Escrituras se podem deduzir também as leis naturais, isto é, aquelas que nos são ensinadas pela própria razão, como Hobbes o demonstra na obra Do Cidadão, bem como as leis civis podem também ser confirmadas também através das Escrituras.

Para corroborar a derivação do que é canônico da autoridade civil, Hobbes cita o fato narrado em II Rs 23: tendo sido achado o Livro da Lei na casa do Senhor pelo sumo sacerdote Hilquias, por ocasião de uma reforma do templo, o rei foi comunicado do fato e, tendo ouvido a leitura do Livro, ordenou que se consultasse a profetiza Hulda. Esta disse que o povo de Judá seria punido por ter desobedecido às palavras do Senhor contidas no Livro, mas que o bom rei Josias seria reconhecido por sua piedade e abençoado por ela.

O texto mostra, claramente, o reconhecimento, pelo rei, da autoridade da profetisa. Mas Hobbes valoriza, além disso, o fato de ter sido o rei quem convocou os anciãos de Judá e os habitantes de Jerusalém para firmarem um pacto com o Senhor a partir das palavras do Livro encontrado. Isso para Hobbes é uma prova de que o Livro foi reconhecido pela autoriade civil.

Parte do texto bíblico é uma preciosidade para a argumentação de Hobbes em torno da autoridade civil sobre os livros canônicos, por isso a citamos abaixo:

“Então, deu ordem o rei, e todos os anciãos de Judá e de Jerusalém se ajuntaram a ele. O rei subiu à Casa do Senhor, e com ele todos os homens de Judá, todos os moradores de Jerusalém, os sacerdotes, os profetas e todo o povo, desde o menor até ao maior; e leu diante deles todas as palavras do Livro da Aliança que fora encontrado na Casa do Senhor. O rei se pôs em pé junto à coluna e fez aliança ante o Senhor, para o seguirem, guardarem os seus mandamentos, os seus testemunhos e os seus estatutos, de todo o coração e de toda a alma, cumprindo as palavras desta aliança, que estavam escritas naquele livro; e todo o povo anuiu a esta aliança”. (II Rs 23:1-3).

O pensador, assim, nesse aspecto, adota uma interpretação da Bíblia reduzindo-a aos problemas da obediência civil, ou seja, ao reino dos homens. E assim como faz na obra Do Cidadão, onde diz que o essencial à salvação se resume na afirmação do Credo Niceno de que “só há salvação em Cristo”, no Leviatã ele afirmará: “As Escrituras foram escritas para mostrar aos homens o Reino de Deus, e preparar seus espíritos para se tornarem seus súditos obedientes; deixando o mundo, e a filosofia a ele referente, às disputas dos homens, pelo exercício de sua razão natural”. (Leviatã, idem, Cap. VIII, p. 49)

Porém, seria necessário observar que, apesar de Hobbes afirmar, em relação aos reis de Israel, que “é verdade que não ofereceram sacrifícios, pois isso constituía incumbência hereditária de Aarão e seus filhos”, há uma narrativa sobre o fato de Saul ter oferecido holocausto, no que foi duramente censurado por Samuel, inclusive com a advertência de que perderia o reino. E posteriormente o rei Davi, tendo também oferecido sacrifícios, não recebeu advertência de qualquer profeta, e tampouco foi punido. Isso mereceria ser estudado do ponto de vista de uma ideologia em torno de Davi e de sua sucessão no trono. (Para quem tiver interesse nesse tema, indicamos a obra de Ariel Finguerman, A Eleição e Israel, S. Paulo: Humanitas/USP: 2003)

Para Hobbes, porém, o que importa é a soberania civil, e seguindo seu raciocínio, como o poder sacerdotal procede do poder civil, é possível que ele admitisse que a pessoa investida desse poder exercesse, excepcionalmente, a função sacerdotal.

Quanto aos profetas, Hobbes afirma que eles eram conselheiros, porém não exerciam autoridade civil ou absoluta sobre os reis, referindo-se novamente ao Rei Josias, que diante de uma profecia do Faraó Neco, decidiu não obedecê-la, porém, enfrentou-o na batalha e morreu. Hobbes argumenta, em relação a esse desfecho trágico para Josias, que apesar de Neco lhe dizer que falava em nome de Deus, pela impossibilidade de saber se ele mentia ou não, Josias não era obrigado, por lei divina ou humana, a acreditar que era Deus quem falava.

E da mesma forma que os profetas, também os apóstolos e seus sucessores, incluindo o Bispo de Roma (considerando tudo o que a doutrina da sucessão de Pedro tem de contraditório), por força da argumentação, poderiam ser considerados, do ponto de vista civil, apenas meros conselheiros do soberano civil, e isso, se este assim o quisesse.

Do ponto de vista teológico, porém, as narrativas bíblicas afirmam que a própria salvação civil poderia estar na boca dos profetas, mas Hobbes oscila entre a admissão do cumprimento das profecias e a dúvida sobre quando e como Deus fala.

Por fim, deve-se observar que Hobbes afirma, no Leviatã, que mesmo uma doutrina verdadeira, caso prejudique a paz civil, poderá ter seu enino proibido pelo soberano. Mas isso é contrário aos próprios princípios do Evangelho e da Reforma, os quais se, por um lado, servem de inspiração ao filósofo para combater o clero, por outro lado, são por ele secundarizados, caso prejudiquem a paz civil. Mas não podemos deixar de perguntar: Por que a verdade prejudicaria a paz civil, se o próprio filósofo diz, na Conclusão do Leviatã: “a verdade que não se opõe aos interesses ou aos prazeres de ninguém é bem recebida por todos”?