sábado, 25 de setembro de 2010

Hobbes: a peculiaridade da Religião ao Homem e seus usos na Política

Dedico este texto à minha querida irmã Eneida (in memoriam), que naquela vida simples da roça sempre me incentivou a estudar. Obrigado, Eneida!

No Cap. XII do Leviatã Hobbes afirma que a religião é uma característica natural do homem, das religiões dos gentios, baseadas no medo, e de seu uso na política de forma oportunista, como se a vontade das autoridades civis fosse a vontade de Deus, bem como da religião daqueles que buscam as causas das coisas, chegando à concepção de uma causa não causada, à qual “os homens dão o nome de Deus”, o que foi reconhecido mesmo entre os pagãos, afirma o filósofo, mas nestes não havia necessariamente a adoração do Deus único, a qual, apesar de presente antes de Abraão, como em Abel e Noé, foi revelada a Abraão e aos seus descendentes, e selada através de um pacto, sob Moisés, que tanto era um líder político quanto sacerdotal, a respeito do que o filósofo tratará mais pormenorizadamente no Leviatã (Parte III), mostrando como, com a instauração da monarquia em Israel, o povo rejeitou o pacto com Deus e fez um pacto de obediência ao poder civil, comandado por Saul, que tinha um poder absoluto, dato pelo próprio Deus, donde o filósofo corroborará sua tese da obediência em primeiro lugar ao poder civil, o que já trabalhara antes em sua obra Do Cidadão.
Sobre natureza religiosa do homem, Hobbes afirma:

“Verificando que só no homem encontramos sinais, ou frutos da religião, não há motivo para duvidar que a semente da religião se encontra também apenas no homem, e consiste em alguma qualidade peculiar, ou pelo menos em algum grau eminente dessa qualidade, que não se encontra nas outras criaturas vivas”.

Ele relaciona o desejo do conhecimento das causas com o reconhecimento de um único Deus eterno, como podemos verificar nas afirmações seguintes:

“O reconhecimento de um único Deus eterno, infinito e onipotente pode ser derivado do desejo que os homens sentem de conhecer as causas dos corpos naturais, e suas diversas virtudes e operações, mais facilmente que do medo do que possa vir a acontecer-lhes nos tempos vindouros. Aquele que de qualquer efeito que vê ocorrer mergulhe profundamente na investigação das causas, deverá concluir que necessariamente existe um primeiro motor. Isto é, uma primeira e eterna causa de todas as coisas, que é o que os homens significam com o nome Deus.

Para Hobbes, porém, a rigor, Deus, devido à sua natureza, não é um objeto de estudo da Filosofia. Ele definira isso bem antes, n´Os Elementos da Lei Natural e Política (1640), ao afirmar:

“Assim como Deus Todo-Poderoso é incompreensível, segue-se que nós não podemos ter uma concepção ou imagem da Divnidade, e consequentemente todos os seus atributos significam a nossa inabilidade e impotência para conceber qualquer coisa concernente à sua natureza, e não alguma concepção sua, excetuando-se apenas esta, que existe Deus. Afinal, os efeitos que naturalmente reconhecemos envolvem uma potência que os produziu antes que eles tivessem sido produzidos; e essa potência pressupõe alguma coisa existente que a tenha enquanto potênca. E a coisa que assim existe como potência para produzir, se não fosse eterna, deveria ter sido produzida por alguma outra anterior a ela, e esta novamente por outra anterior a ela, até que chegássemos a uma eterna, ou seja, à potência primeira de todas as potências, e causa primeira de todas as causas. E esta é aquela que todos os homens concebem pelo nome de Deus, envolvendo eternidade, incompreensibilidade e onipotência. E então todos que o considerarem poderão saber que Deus existe, mas não o que ele é. Mesmo num homem que tenha nascido cego, embora não seja capaz de ter qualquer imaginação acerca de que tipo de coisa é o fogo, ainda assim ele não pode deixar de saber que existe alguma coisa a que os homens dão o nome de fogo, porque ela o esquenta”.

Também na obra Sobre o Corpo Hobbes afirma que Deus é “eterno, não-gerado, incompreensível”. E na obra Do Cidadão explica que “eterno” significa fora do tempo. Ora, isso só pode ser entendido como uma forma de demonstrar a veneração de Deus, pois se tudo o que existe está no tempo, logo não existiria Deus, porém ao chamá-lo de eterno, certamente o homem está querendo dizer que Ele, apesar de estare no tempo, não tem uma existência tempoalmente limitada. Porém, explicar a sua natureza não é possível.

Quanto ao medo como origem das religiões dos gentios, afirma o filósofo:
“Alguns dos antigos poetas disseram que os deuses foram criados pelo medo dos homens, o que quando aplicado aos deuses (quer dizer, aos muitos deuses dos gentios), é muito verdadeiro”.

Sobre o uso que as autoridades dos gentios fizeram do medo e da piedade dos povos, visando conter suas revoltas, afirma o filósofo:
“Os primeiros fundadores e legisladores de Estados entre os gentios, cujo objetivo era apenas manter o povo em obediência e paz, tiveram os seguintes cuidados:Incutir em suas mentes a crença de que os preceitos que ditavam a respeito da religião não deviam ser considerados como provenientes de sua própria invenção, mas como os ditames de algum deus.Fazer acreditar que aos deuses desagradavam as mesmas coisas que eram proibidas pelas leis.Prescrever cerimônias, suplicações, sacrifícios e festivais, os quais se devia acreditar capazes de aplacar a ira dos deuses.E através destas e outras instituições semelhantes conseguiam, a serviço de seu objetivo (que era a paz do Estado), que o vulgo, em ocasiões de desgraça, atribuísse a culpa à falta de cuidado, ou ao cometimento de erros, em suas cerimônias, ou à sua própria desobediência às leis, tornando-se assim menos capaz de rebelar-se contra seus governantes.E assim se vê como a religião dos gentios fazia parte de sua política”.

E ainda no Cap. XII do Leviatã ele antecipa de forma sintética e contundente o que irá expor com riqueza de detalhes nas Partes III e IV da obra sobre a presença indevida da Igreja em assuntos civis, e à obviedade disso. Por exemplo, ela deixa essa pergunta ao leitor:
“Haverá alguém que não seja capaz de ver para benefício de quem contribuía acreditar-se que um rei só recebe de Cristo sua autoridade no caso de ser coroado por um bispo? Que um rei, se for sacerdote, não pode casar-se? Que se um príncipe nasceu de um casamento legítimo ou não é assunto que deve ser decidido pela autoridade de Roma? Que os súditos podem ser libertos de seu dever de sujeição, se a corte de Roma tiver condenado o rei como herege?”.

E assim conclui sua crítica à decadência da Religião e à sua extensão à Política, não só na Igreja Romana, mas também na Reformada, atribuindo-as à decadência do clero, chegando a afirmar que podia “atribuir todas as mudanças de religião no mundo a uma e à mesma causa, isto é, sacerdotes desprezíveis, e isto não apenas entre os católicos, mas até naquela Igreja que mais presumiu de Reforma”.

Hobbes organiza o Leviatã falando de uma evolução do homem do estado de natureza para o Estado Civil. Na própria titulação das partes do Leviatã ele mostra a decadência advinda da usurpação do poder civil pela Igreja, pois vejamos: Do Homem (parte I) ao Estado (II), deste para o Estado Cristão (III), e daí para o Reino das Trevas (IV), de onde o filósofo quer com todas as forças de seu intelecto resgatar o Homem.

Para isso ele se utiliza da principal arma da Igreja, as Escrituras, às quais ele chama de “fortificações avançadas do inimigo, de onde este ameaça o poder civil”. Agora, porém, ele as lerá procurando demonstrar a anterioridade do poder civil a qualquer outra instituição, principalmente a que se diz guardiã dos mistérios de Deus.

Se os gentios usavam da religião para fortalecer a sua hegemonia, a Igreja procurou, a partir da religião, criar uma nova hegemonia, em nome de Deus, sobre o poder civil, presumindo ser a única intérprete das Escrituras e procurando usurpar não só o lugar do Estado, mas até do próprio Deus, pois presumia que só seu discurso sobre Ele era válido, controlando tanto o Cânon quanto a posterior interpretação do que era tido como canônico.

Eis a grande missão de Hobbes: demonstrar, não só pela razão, mas também pelas Escrituras, que a Igreja laborava em um erro! Por isso, Richard Tuck teria razão ao afirmar:
“Segundo Hobbes, a área mais importante de potencial intervenção dosoberano é a religião. Faz sentido dizer que são as partes III e IV de Leviatã que constituem o objetivo principal da obra”.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

A Filosofia definida por Hobbes no Leviatã

Thomas Hobbes (1588-1679)
Abaixo segue parte das definições de Filosofia de acordo com Hobbes, transcritas de sua obra Leviatã, publicada em 1651:

“Por filosofia se entende o conhecimento adquirido por raciocínio a partir do modo de geração de qualquer coisa para as propriedades; ou das propriedades para algum possível modo de geração das mesmas, com o objetivo de ser capaz de produzir, na medida em que a matéria e a força humana o permitirem, aqueles
efeitos que a vida humana exige. Assim o geômetra, a partir da construção de figuras, encontra muitas de suas propriedades, e a partir de suas propriedades novos modos de construí-las por raciocínio, com o objetivo de ser capaz de medir a terra e a água, e para outros inumeráveis usos. Assim o astrônomo, a partir do nascente, do poente e do movimento do sol e das estrelas, em várias partes dos céus, descobre as causas do dia e da noite e das diferentes estações do ano, com o que mantém uma contagem do tempo. E o mesmo acontece nas outras ciências.
Definição pela qual fica evidente que não consideramos como parte dela aquele conhecimento originário chamado experiência, no qual consiste a prudência, porque não é atingido por raciocínio, mas se encontra igualmente nos animais e no homem, e nada mais é do que a memória de sucessões de eventos em tempos passados, na qual a omissão de qualquer pequena circunstância, alterando o efeito, frustra a esperança
do mais prudente, visto que nada é produzido pelo raciocínio acertadamente senão a verdade geral, eterna e imutável.
Nem devemos portanto dar esse nome a quaisquer falsas conclusões, pois aquele que raciocina corretamente com palavras que entende nunca pode concluir um erro.
Nem aquilo que qualquer homem conhece por revelação sobrenatural, porque não é adquirido por raciocínio.
Nem aquilo que se tira por raciocínio da autoridade de livros, porque não é por raciocínio de causa a efeito, nem do efeito para a causa, e não é conhecimento, mas crença.
Sendo a faculdade de raciocinar consequente ao uso da linguagem, não era possível que não houvesse algumas verdades gerais descobertas por raciocínio, quase tão antigas como a própria linguagem. Os selvagens da América não deixam de possuir algumas boas proposições morais; também possuem um pouco e aritmética para adicionar e dividir com números não muito grandes, mas nem por isso são filósofos. Pois assim como havia plantas de cereal e de vinho em pequena quantidade espalhadas pelos campos e bosques antes de os homens conhecerem suas virtudes, ou usarem-nas como alimento, ou plantarem-nas separadamente em campos e vinhas, época em que se alimentavam de bolotas e bebiam água, assim também deve ter havido várias especulações verdadeiras, gerais e úteis desde o início, à maneira de plantas naturais da
razão humana, mas ao princípio eram muito poucas. Os homens viviam baseados na experiência grosseira, não havia método, isto é, não semeavam nem plantavam o conhecimento por si próprio, separado das ervas daninhas e das plantas vulgares do erro e da conjetura. E sendo a causa disso a falta de tempo, devida à procura das necessidades da vida e à defesa contra os vizinhos, era impossível, até que se erigisse um grande Estado, que as coisas se passassem de maneira diferente. O ócio é o pai da filosofia, e o Estado, o pai da paz e do ócio. Quando pela primeira vez surgiram grandes e florescentes cidades, aí surgiu pela primeira vez o estudo da filosofia.
A filosofia não surgiu entre os gregos e os outros povos do ocidente, cujos Estados (que não eram talvez maiores do que Lucca ou Gênova) nunca tinham paz, a não ser quando seus receios recíprocos eram iguais, nem ócio para observar outra coisa além de se observarem mutuamente. Por fim, quando a guerra uniu muitas destas cidades gregas
menores em cidades menos numerosas e maiores, então começaram a adquirir a reputação de sábios sete homens de várias partes da Grécia, alguns deles devido a máximas morais e políticas, e outros devido ao saber dos caldeus e egípcios, que era astronomia e geometria. Mas ainda não ouvimos falar de quaisquer escolas de filosofia.
Depois que os atenienses, pela derrota dos exércitos persas, alcançaram o domínio do mar, e portanto de todas as ilhas e cidades marítimas do Arquipélago, tanto da Ásia como da Europa, e se tornaram ricos, não tinham nada que fazer nem em seu país nem fora dele, exceto (como diz São Lucas, Atos, 17,21) contar e ouvir notícias, ou discorrer publicamente sobre filosofia, dirigindo-se aos jovens da cidade. Todos os mestres
escolheram um lugar para esse fim: Platão em certos passeios públicos denominados academia, derivado de Academus, Aristóteles no caminho para o templo de Pan, chamado Lyceum, outros na Stoa, ou caminho coberto, onde as mercadorias dos comerciantes eram trazidas para terra, outros em outros lugares, nos quais passavam o tempo de seu ócio ensinando ou discutindo suas opiniões, e alguns em qualquer lugar onde pudessem reunir a juventude da cidade para ouvi-los falar. E isto foi também o que fez Carnéades em Roma, quando era embaixador, o que levou Catão a aconselhar ao Senado que o mandasse embora rapidamente, com receio de que ele corrompesse os costumes dos jovens que se encantavam ao ouvi-lo falar (como eles pensavam) belas coisas.
Daqui resultou que o lugar onde qualquer deles ensinava e discutia se chamava schola, que em sua língua significava ócio, e suas disputas diatribae, o que significa passar o tempo. Também os próprios filósofos tinham o nome de suas seitas, algumas delas derivadas destas escolas, pois aqueles que seguiam a doutrina de Platão eram denominados acadêmicos, os seguidores de Aristóteles, peripatéticos, do nome do
caminho onde ele ensinava, e aqueles que Zenão ensinava estóicos, de stoa, como se denominássemos os homens a partir de Morefelds, igreja de São Paulo e Bolsa, porque eles ali se encontram muitas vezes para tagarelar e vaguear”.

(O textocompleto encontra-se no Volume da Coleção Os Pensadores dedicado a Thomas Hobbes. Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz N. da Silva. 2. ed. S. Paulo, Abril Cultural, 1974.)