terça-feira, 2 de novembro de 2010

Pedro, o Papado e a Soberania Civil, a partir das Escrituras e de Thomas Hobbes

Aos meus pais, Epaminondas e Rosa Carvalho, e à minha irmã Eneida, que repousam com o Senhor.

A doutrina católica sustenta com argumentos baseados em textos e interpretações das Escrituras que Pedro tinha o primado entre os apóstolos, bem como têm argumentos baseados em registros de São Jerônimo, Santo Agostinho, Sulpício Severo, Eusébio, São Cipriano e outros, de que Pedro exerceu o episcopado na capital do Império.
Se nos detivermos apenas nas Escrituras, verificaremos que de fato há textos que o colocam em lugar de liderança entre os apóstolos. Vejamos alguns exemplos:
Em primeiro lugar, ao relacionar os nomes dos apóstolos, o Evangelho de Mateus diz: “Ora, os nomes dos doze apóstolos são estes: primeiro, Simão, por sobrenome Pedro”. E em Marcos, o Evangelho mais antigo do Cânon, a escolha dos doze começa a ser assim exposta: “Eis os doze que designou: Simão, a quem acrescentou o nome de Pedro”.
Em segundo lugar, Pedro tomava a palavra por diversas vezes diante de Cristo, expondo dúvidas não só suas, mas também dos outros discípulos, e Hobbes entende que ele falava em nome de todos.
Em terceiro lugar, Pedro, ao lado de Tiago e João, estava mais próximo de Cristo em seu ministério, privando de alguns ensinos e experiências.
Em quarto lugar, foi dele a Confissão considerada por Hobbes como o fundamento da Igreja. Quando Cristo lhes perguntou: “Mas vós, quem dizeis que eu sou?”, ele respondeu: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo”, da qual Hobbes diz que ele a fez em nome de todos. E ele fez outra importante Confissão, semelhante à anterior: “Senhor, para quem iremos? Tu tens as palavras da vida eterna”.
Em quinto lugar, a teologia católica entende que a afirmação de Cristo a seguir deve ser entendida como base para o Primado de Pedro: “Também eu te digo que tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela” (Mt 16:18).
Em sexto lugar, Cristo ordenou a Pedro, por três vezes, que apascentasse o seu rebanho, o que lhe conferiu autoridade, mas também imensa responsabilidade.
Em sétimo lugar, e como consequência do que expusemos acima, Pedro foi líder, pastor e grande pregador da Igreja nascente. Sua liderança é assim descrita por Lucas: “Naqueles dias, levantou-se Pedro no meio dos irmãos” e também: “Então, se levantou Pedro, com os onze”.
Em oitavo lugar, no Concílio de Jerusalém, que discutia se a lei de Moisés e os costumes judaicos deveriam ser cumpridos pelos gentios convertidos, Pedro foi o primeiro a orientar os conciliares, opondo-se a isso, e após a sua palavra, “toda a multidão silenciou”.
Em nono lugar, Paulo afirmou que seu apostolado foi apoiado por Pedro, que era reputado como uma das colunas da Igreja: “Tiago, Cefas (que é Pedro) e João, que eram reputados colunas, me estenderam, a mim e a Barnabé, a destra de comunhão”.
Apesar de sua liderança, porém, como já vimos, o apóstolo Pedro ensinava a obediência civil. Acrescentaríamos ao que já dissemos sobre isso que ele ressalva, como os demais apóstolos, e como Hobbes cita na obra Do Cidadão, que “antes importa obedecer a Deus do que aos homens”.
Ainda que a Igreja argumente que Pedro tenha sido o primeiro Papa, era certamente um Papa diferenciado, humilde, que não morava num palácio ou era protegido por uma guarda armada, que não adotava rituais pomposos em catedrais suntuosas, mas reunia-se nas catacumbas, e não era um bispo metropolitano, com influências sobre a política, mas vivia sob a perseguição de Nero, que o levou à execução.
E de acordo com as Escrituras, apesar de Cristo ter dito: “Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja”, quando Pedro procurou dissuadi-lo de se entregar para ser crucificado, Cristo lhe disse: “Tu és para mim pedra de tropeço, porque não cogitas das coisas de Deus, e sim das dos homens”. Ora, dificilmente Cristo colocaria a alguém que lhe serviu de pedra de tropeço como pedra fundante de sua Igreja.
E também o próprio Pedro, quando da condenação de seu mestre, negou-o veementemente, chegando a dizer sobre Cristo: “Não o conheço, nem compreendo o que dizes” (Mc 14:68). Bem como, depois de negá-lo segunda vez, sendo novamente interpelado, o texto de Marcos afirma que ele “começou a praguejar e a jurar: Não conheço esse homem de quem falais” (Mc 14:71). Isso também o desabilitaria para ser a pedra sobre a qual a Igreja se assentaria.
Porém, o próprio Pedro reconhece que a pedra, ou o fundamento da Igreja, é Cristo, pois o apóstolo afirmou: “Este Jesus é pedra rejeitada por vós, os construtores, a qual se tornou a pedra angular" (At 4:11). E em sua Primeira Carta, que é considerada autêntica pela Crítica, ele escreve: “A pedra que os construtores rejeitaram, essa veio a ser a principal pedra, angular” (I Pd 2:7), referindo-se novamente a Cristo. Ora, se ele mesmo disse isso, como seria ele a pedra sobre a qual a Igreja se edificaria?
A Igreja ainda argumenta que Cristo colocou a Pedro como seu Vigário, isto é, como seu substituto, ao dizer-lhe: “Dar-te-ei as chaves do reino dos céus; o que ligares na terra terá sido ligado nos céus; e o que desligares na terra terá sido desligado nos céus” (Mt 16:19). E no decorrer da História, os Papas seriam sucessores de Pedro e, portanto, Vigários de Cristo, e pretendendo, como tal estar acima do bem e do mal. Mas se a Escritura estiver certa, ao agir assim eles ignorariam duas passagens bíblicas muito valorizadas por Hobbes: primeiro, que Cristo disse: “O meu reino não é deste mundo”, segundo, que para Paulo o Reino de Deus ainda não veio em sua plenitude, pois o apóstolo diz que Cristo ainda irá “entregar o reino ao Deus e Pai” (I Co 15:24), o que Hobbes cita na obra Do Cidadão, onde faz uma explicação sobre o Reino de Deus que se constitui numa grande aula sobre o Reino de Deus, mesmo para boa parte dos teólogos e dos que o chamam de ateu.
De forma que, concluindo essas considerações a partir das Escrituras, certamente devemos reconhecer o importante papel de Pedro na História da Igreja, mas quanto a considerá-lo o primeiro Papa, com base no Novo Testamento, dificilmente, pois a Igreja ainda era marcada pelo carisma, vindo a institucionalizar-se com o passar do tempo, e a moldar-se na hierarquia de Roma para administrar-se, sendo o Bispo de Roma, a capital do Império, o Bispo primaz, o que é um sinônimo de Papa. E a rigor, se a palavra Papa significa “Pai”, de acordo com o Evangelho ela dificilmente poderia ser usada em relação a um homem, pois Cristo teria dito, segundo Mateus: “A ninguém sobre a terra chameis vosso pai; porque só um é vosso Pai, aquele que está nos céus” (Mt 23.9).
Agora, vamos ao que Hobbes pensou sobre isso no Cap. XLII do Leviatã, ao discutir as teses do Cardeal Belarmino sobre o Sumo Pontífice. Apesar de ser longa a citação, o leitor verá que ela é necessária, por ser sustentável e suficiente:
“Nosso Salvador pregava unicamente, por ele mesmo, por João Batista e por seus apóstolos, um único artigo de fé, que ele era o Cristo; sendo que todos os outros artigos exigem apenas a fé que nesse se fundamenta. João começou primeiro (Mt 10,7), pregando apenas isto: O Reino de Deus está próximo. E nosso Salvador pregava o mesmo (Mt 4,17); e quando encarrega os doze apóstolos de sua missão (Mt 10,7) não há referência à pregação de qualquer outro artigo a não ser esse. Era este o artigo fundamental, e é ele o fundamento da fé da Igreja. Posteriormente, quando os apóstolos voltaram a ele, perguntou a todos eles, e não apenas a Pedro (Mt 16,13), quem os homens diziam que ele era, e eles responderam que alguns diziam que ele era São João Batista, outros Elias, outros Jeremias, ou um dos profetas. Então ele voltou a perguntar-lhes, e não apenas a Pedro (v. 15): Quem dizeis vós que eu sou? Ao que São Pedro respondeu (em nome de todos): Tu és Cristo, Filho do Deus vivo; o que eu já disse ser o fundamento da fé de toda a Igreja. Aí nosso Salvador aproveitou a ocasião para dizer: Sobre esta pedra construirei minha Igreja. Pelo que fica manifesto que a pedra fundamental da Igreja era o mesmo que o artigo fundamental da fé da Igreja”.
Hobbes afirma que o termo “pontifex maximus” significava inicialmente que o Papa era a suprema autoridade em assuntos espirituais e, portanto, indicava também que ele estava sujeito ao poder civil, como um funcionário deste. Mas, continua o filósofo, depois do fim do Império o termo foi apropriado pela Igreja em relação ao Bispo de Roma e a Igreja, que pretendia ter um império universal, conseguiu-o conseguiu através do medo que incutiu nos fiéis, aos quais ensinava que, nas divergências entre os imperadores, eles deveriam permanecer fiéis, acima de tudo à Igreja, antes que a seus príncipes, pois o papa detinha o poder espiritual, e desobedecê-lo era o mesmo que se opor a Cristo. Assim, afirmando que é “a Igreja agora sobre a terra o reino de Cristo”, e se isso for aceito, prossegue Hobbes, “tem de se aceitar que Cristo tenha um representante entre nós para dizer-nos quais são as suas ordens”. E quem será esse representante, senão o Papa?
Obviamente, diz Hobbes, toda essa doutrina foi criada pelos próprios Papas, visando atender à sua presunção de poder e à sua aplicação junto à consciência dos súditos do poder civil. Porém, Hobbes afirma que “não deve haver nenhum poder sobre as consciências dos homens, a não ser da própria palavra (de Deus)” bem como que “é desarrazoado... exigir de um homem dotado de razão própria que siga a razão de qualquer outro homem”.
Hobbes também afirma que depois que essa doutrina de que a Igreja é o Reino de Deus prevaleceu, as ciências naturais e a moralidade da razão natural foram suprimidas, bem como a sabedoria, a humildade, a clareza de doutrina e a sinceridade de linguagem. Os pastores da Igreja cometeram não apenas simples faltas, mas escândalos, e a ambição pelos cargos, principalmente pelo de representante de Cristo e sua consequente influência sobre o poder civil levou-os a perderem “a reverência devida à função pastoral”. O que é impressionante é que não é um profeta quem está falando, mas um filósofo. Ou os dois termos são, em relação a ele e a muitos outros, sinônimos?
Diante da decadência do clero assim exposta, em relação à doutrina, à sabedoria, moralidade e à reputação, Hobbes afirma que “os homens mais sábios, entre aqueles que possuíam qualquer poder no Estado civil, só precisavam da autoridade de seus príncipes para lhes negarem obediência”.
E enfim, sobre a presunção do Bispo de Roma de ser sucessor de Pedro, Hobbes afirma:
“Desde a época em que o bispo de Roma conseguiu ser reconhecido como bispo universal, pela pretensão de suceder a São Pedro, toda sua hierarquia, ou reino das trevas, pode ser comparado adequadamente ao reino das fadas, isto é, às fábulas contadas por velhas na Inglaterra referentes aos fantasmas e espíritos e às proezas que praticavam de noite. E se alguém atentar no original deste grande domínio eclesiástico verá facilmente que o Papado nada mais é do que o fantasma do defunto império romano, sentado de coroa na cabeça sobre o túmulo deste, pois assim surgiu de repente o Papado das ruínas do poder pagão”.
Porém, a despeito das contradições em torno da doutrina do Papado, da sucessão de Pedro e das interferências da Igreja na cultura e na Política, até hoje a Igreja define o Bispo de Roma como o Vigário de Cristo, conforme a seguinte definição atual, da Catholic Encyclopaedia:
“The title pope… is at present employed solely to denote the Bishop of Rome, who, in virtue of his position as successor of St. Peter, is the chief pastor of the whole Church, the Vicar of Christ upon earth”.
Uma definição que tem, sem dúvida, um conteúdo tanto metafísico quanto devocional, mas também pretensioso, ideológico e político. Porém, na História da Igreja, observa-se que a autoridade de Cristo, dos apóstolos e profetas não se estendia ao domínio político, como muito o bem o demonstrou Hobbes, e como já diziam as Escrituras, as quais Hobbes insiste em reler em oposição à pretensão de hegemonia civil da Igreja: “O meu reino não é deste mundo”.
E hoje, se olhássemos para o despojamento de Pedro, por um lado, e para a suntuosidade da Catedral de S. Pedro, por outro, poderíamos perguntar o que o santo homem pensaria de seu luxo e da presumida soberania da instituição eclesiástica em tempos idos da História, ele que ensinou:
“Sujeitai-vos a toda instituição humana por causa do Senhor; quer seja ao rei, como soberano, quer às autoridades como enviadas por ele, tanto para castigo dos malfeitores, como para louvor dos que praticam o bem... Tratai a todos com honra, amai aos irmãos, temei a Deus, honrai ao rei”.
Assim, mesmo em Pedro, considerado pela própria Igreja o príncipe dos apóstolos, podemos encontrar, abaixo da obediência a Deus, a legitimação da obediência ao poder civil, a qual, porém, não está acima de Deus, como o próprio Hobbes reconhece, citando Pedro e os demais apóstolos, que disseram: “Antes importa obedecer a Deus do que aos homens” (Atos 5.29)