quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Razão, Ciência e Paz Civil em Hobbes

No Cap. IV do Leviatã, após tratar da origem da linguagem e de sua utilidade para a vida associada, o contrato e a paz civil, Hobbes argumenta contra a linguagem das Escolas, na qual estão presentes conceitos insignificantes, tais como “entidade", "intencionalidade" e "qüididade”.

Hobbes observa que os nomes ditos universais designam, na realidade, coisas particulares: “... homem, cavalo, árvore, cada um dos quais, apesar de ser um só nome, é contudo o nome de várias coisas particulares, em relação às quais em conjunto se denominam um universal, nada havendo no mundo universal além de nomes, pois as coisas nomeadas são, cada uma delas, individuais e singulares”. E conclui a distinção conceitual afirmando que “enquanto o nome próprio traz ao espírito uma coisa apenas, os universais recordam qualquer dessas muitas coisas”.

Em sua crítica dos conceitos universais é relevante o recurso à Geometria. Ele afirma que “... a consequência descoberta num caso particular passa a ser registrada e recordada, como uma regra universal... e faz que aquilo que se descobriu ser verdade aqui e agora seja verdade em todos os tempos e lugares”.

A Geometria, portanto, é a ciência dos universais e o discurso que se utiliza das consequências de forma correta, pois nela começa-se pelas definições, colocadas no início dos cálculos. Aquilo que é descoberto geometricamente, aqui e agora, é verdade em todos os tempos. É nesse contexto conceitual que Hobbes afirma da Geometria “que é a única ciência que prouve a Deus conceder à humanidade”.

E a análise das definições, partindo da Geometria, vai para a crítica da leitura daqueles que simplesmente avaliam as palavras “pela autoridade de um Aristóteles, de um Cícero, ou de um Tomás, ou de qualquer outro doutor que nada mais é do que um homem”.

Para Hobbes, os maus raciocínios e a má leitura podem fazer com que as palavras, de “calculadores dos sábios”, se tornem “a moeda dos loucos”, quando aceitas sob o argumento da autoridade. Dessa forma, Hobbes vai minando a Escolástica e qualquer tradição de autoridade, seja filosófica ou religiosa, mas principalmente esta, desde o início de sua obra, preparando o espírito do leitor para que concorde com o argumento principal de sua obra, longamente sedimentado: o da soberania do Estado sobre a Igreja.

Verifica-se em sua crítica às más definições que a Geometria é considerada um modelo de tigor, devido à sua exigência de precisão no método e, consequentemente, na elaboração das definições. Por isso, de acordo com Bobbio, “o verdadeiro fundador das ciências morais foi Hobbes”, devido à aplicação de um novo método, com base na Geometria, à análise da vida moral e política.

Bobbio afirma que para Hobbes a desordem da vida social de sua época era devida a um problema de método e de interpretação, e estava vinculada a doutrinas falsas de escritores antigos e modernos, bem como ao sectarismo dos maus teólogos. Hobbes comparava a concórdia do campo da Matemática “com o reino da discórdia sem trégua em que se agitavam as opiniões dos teólogos, dos juristas e dos escritores políticos”.

Assim, ainda de acordo com Bobbio, para Hobbes os males da humanidade seriam eliminados se fossem conhecidos em suas causas com a mesma certeza das “grandezas das figuras”. As leis de natureza, dessa forma, portanto, “sobre o que se deve fazer ou deixar de fazer”, são deduzidas da razão. Assim, como a discórdia na sociedade civil tinha como uma de suas causas a discórdia dos teólogos, e que ele pretendia aplicar à moral e à política a mesma precisão da Geometria.

No Cap. V do Leviatã, estendendo a análise da Linguagem o filósofo tratará da Razão e da Ciência. Quando raciocinamos, afirma ele, fazemos adições e subtrações, as quais podem ser observadas na em diversas áreas, mas é relevante o fato dele afirmar que isso está presente na filosofia civil, na filosofia jurídica e moral, conforme se segue, quando ele já usa a palavra pactos, associando-a a um cálculo, conforme o ará depois, ao final do Cap. XIII, falando das paixões e da razão que levaram à criação da Pessoa Soberana visando a paz civil:

“Os escritores de política adicionam em conjunto pactos para descobrir os deveres dos homens, e os juristas leis e fatos para descobrir o que é certo e errado nas ações dos homens privados”.

O Cap. V da obra reveste-se de capital importância em sua luta contra os absurdos das escolas, e a afirmação abaixo bem pode ser uma ironia contra as autoridades eclesiásticas, que presumindo que o Papa possuía um poder universal, afirmavam absurdos como se fossem razões:

“Quando os homens que se julgam mais sábios do que todos os outros clamam e exigem uma razão certa para juiz, nada mais procuram senão que as coisas sejam determinadas, não pela razão de outros homens, mas pela sua própria. É tão intolerável na sociedade dos homens como no jogo, uma vez escolhido o trunfo, usar como trunfo em todas as ocasiões aquela série de que se tem mais cartas na mão. Pois nada mais fazem do que tomar cada uma de suas paixões, à medida que vão surgindo neles, pela certa razão, e isto em suas próprias controvérsias, revelando sua falta de justa razão com a exigência que fazem dela”.

O homem supera a todos os outros animais, pois é capaz de conceber, inquirir as consequências e reduzi-las a “regras gerais, chamadas teoremas, ou aforismos”, de “raciocinar, ou calcular, não apenas com números, mas com todas as outras coisas que se podem adicionar ou subtrair umas às outras”, porém, continua Hobbes, “este privilégio é acompanhado de um outro, que é o privilégio do absurdo, ao qual nenhum ser vivo está sujeito, exceto o homem”.

Em oposição aos absurdos, Hobbes está em busca da razão ou da ciência, que é “obtida com esforço, primeiro através de uma adequada imposição de nomes, e em segundo lugar através de um método bom e ordenado de passar dos elementos, que são nomes, a asserções feitas por conexão de um deles com o outro, e daí para os silogismos, que são as conexões de uma asserção com outra, até chegarmos a um conhecimento de todas as consequências de nomes referentes ao assunto em questão, e é a isto que os homens chamam ciência”.

Enfim, Hobbes relaciona a ciência com a paz civil e com o bem da própria humanidade quando afirma, aso contrário das palavras bem definidas, próprias da ciência, “as metáforas e as palavras ambíguas e destituídas de sentido são como ignes fatui, e raciocinar com elas é o mesmo que perambular entre inúmeros absurdos, e o seu fim é a disputa, a sedição ou a desobediência”.


* As citações de Hobbes são do Leviatã, 2a. ed., publicada pela Abril em 1979. Trad. de João Paulo Monteiro da Cruz e Maria Beatriz N. da Silva. A obra de Bobbio citada é Sociedade e Estado na Filosofia Politica Moderna, S. Paulo, Brasiliense, 1986, p. 19 e 20.