sexta-feira, 23 de julho de 2010

Ideologia e Razão de Estado em Textos Bíblicos

Aos meus alunos, como diz Roberto DaMatta, "com quem aprendi a ser professor".
Há diversos textos bíblicos que demonstram interesses ideológicos, ardis e traições nas relações políticas, nalguns dos quais os autores, além de exporem a sua leitura ou interpretação dos fatos, incluem também seus interesses ideológicos e políticos. Podemos mesmo ver em várias narrativas bíblicas uma presença da Razão de Estado, que se caracteriza pelo pragmatismo servil, que instrumentaliza a razão e a ação moral em função do resultado. Vejamos alguns casos.
Em primeiro lugar, observamos nas narrativas do AT que era comum entre os ministros, conselheiros e outros oficiais dos reis a adulação e a busca da aprovação de decretos visando interesses pessoais, o que é narrado tanto no Livro de Ester quanto no Livro de Daniel. No caso do Livro de Ester, o ministro Hamã paga uma alta quantia em tesouros de prata para que o rei Assuero aprove um decreto para a aniquilação dos judeus. Trata-se de um suborno, visando a matança dos judeus, o qual o rei aceita.
Quanto o Livro de Daniel, nele narra-se a aprovação de um decreto de culto ao Rei Dario, decreto esse feito claramente com a finalidade de condenar à morte Daniel, que era o mais sábio conselheiro da corte. Sabendo que Daniel não deixaria de cultuar o Deus de Israel, seus adversários convenceram o rei a autorizar um decreto que dispunha que qualquer pessoa que fosse flagrada cultuando a outro “deus” seria condenada à morte, sendo lançada na cova dos leões.
O caráter de adulação contido nessa proposta feita ao rei pelos opositores de Daniel era óbvio, porém foi aceito pelo envaidecido rei, que teve uma grande estátua levantada em sua homenagem, não só cívica, mas também religiosa. E quando Daniel foi condenado à morte o rei não podia mais voltar atrás, pois não era assim que se fazia entre os medos, e o próprio rei desejou a Daniel que o Deus de Israel o livrasse, o que de fato ocorreu, pois Daniel foi salvo da boca dos leões, mas quanto a seus inimigos, o texto diz que foram devorados por eles.
O conteúdo teológico dessa narrativa reforça o cumprimento do primeiro mandamento: “Não terás outros deuses diante de mim”, bem como incentiva o povo cativo a manter-se fiel à Aliança com o Deus de Israel.
Em segundo lugar, observamos que também pelos reis de Israel era feito esse tipo de manipulação dos decretos em seu próprio favor. O próprio Salomão usou desse expediente, de forma ardilosa, para condenar a Simei, que havia ofendido a honra de seu pai, o rei Davi, ao praguejar contra ele.
Já idoso, Davi incumbe a Salomão de vingá-lo, dizendo: “Eis que também contigo está Simei..., que me maldisse com dura maldição... e eu, pelo Senhor, lhe jurei, dizendo que o não mataria à espada. Mas, agora, não o tenhas por inculpável, pois és homem prudente e bem saberás o que lhe hás de fazer para que as suas cãs desçam à sepultura com sangue” (I Rs 2:8-9).
Nessas palavras de Davi: “bem saberás o que lhe hás de fazer”, está clara a declaração da morte de Simei, por quem Davi havia jurado pelo Senhor que não o mataria. Então, foi um falso juramento, pois ele delegou a Salomão a morte de seu súdito. E até Cristo era mandamento isso: "Ouvistes que foi dito aos antigos: Não jurarás falso, mas cumprirás rigorosamente para com o Senhor os teus juramentos". (Mt 5:33).
Então, atendendo ao ardil insinuado por Davi, Salomão proibiu a Simei de sair da cidade de Jerusalém sob pena de que, no dia em que o fizesse, seria morto, por ter desobedecido a um decreto real (I Rs 2:36-46). O homem, porém, ao cabo de três anos, tendo dois escravos foragidos, saiu em sua busca e, ao retornar, foi morto. E Salomão ainda argumentou que Simei não guardou o juramento do Senhor, nem a ordem que ele, o rei, lhe dera (v. 43), justificando assim sua estratégia para fortificar o reino, o que é claro no texto (v. 46).
Assim, Davi, homem de quem Paulo disse, em pregação em Antioquia da Pisídia, que dele falara o Senhor: “Achei Davi, filho de Jessé, homem segundo o meu coração, que fará toda a minha vontade” (At 13:22), citado até hoje pela tradição cristã como o homem “segundo o coração de Deus”, e seu filho Salomão, que foi exaltado nos textos do AT como o mais sábio de sua época, politicamente não eram cordeiros, usando a razão de forma pragmática e com astúcia.
Mas quanto a Salomão, Cristo parece zombar dos textos laudatórios do AT sobre a sua glória, afirmando: “Considerai como crescem os lírios do campo: eles não trabalham, nem fiam. Eu, contudo, vos afirmo que nem Salomão, em toda a sua glória, se vestiu como qualquer deles” (Mt 6: 28-29). E quanto à sabedoria de Salomão, afirmou: “E eis aqui está quem é maior do que Salomão”. (Mt 12:42).
Outra narrativa bíblica que pode ser lida na perspectiva da razão de Estado, e talvez até antecipando esse conceito, é aquela sobre Eúde, um Juiz de Israel. Este, para vencer os moabitas, mentiu ao seu rei de duas formas. Primeiro, disse: “Tenho uma palavra secreta a dizer-te, ó rei”. A seguir, tendo sido recebido em audiência particular, disse: “Tenho a dizer-te uma palavra de Deus”. (Jz 3:19-20)
Porém, o que ele fez foi assassinar o rei com um golpe de punhal, e depois disso venceu o seu povo, isto é, os moabitas, levando a terra de Israel a ficar em paz por 80 anos (Juízes 3:30). É difícil garantir que esse período de paz tenha sido de 80 anos, pois Espinosa demonstra que há informações contraditórias sobre a cronologia em vários textos do AT. Um exemplo, de acordo com ele, é o de que, apesar de I Reis 6: 1 afirmar que 480 anos após a saída de Israel do Egito, Salomão começou a edificar o Templo, somando-se os anos citados no Pentateuco, em Josué e em Juízes, na realidade o Templo começou a ser construído 580 anos depois da saída do Egito. (Tratado Teológico-Político, p. 158-160, S. Paulo: Martins Fontes, 2003).
E voltando ao juiz Eúde, a suposta palavra de Deus alegada por ele era um ardil. Ele agiu como falso profeta, pois o próprio AT diz que "Deus não é homem, para que minta" (Nm 23:19), enquanto o NT afirmará que "é impossível que Deus minta" (Hb 6:18). Além disso, Eúde, depois de matar o piedoso rei dos moabitas, possivelmente temente ao Deus de Israel, disse aos seus subordinados: “Segui-me, porque o Senhor entregou nas vossas mãos os vossos inimigos” (Jz 3:28).
Se fizermos uma leitura dessas e de determinadas outras narrativas bíblicas sob a perspectiva da estratégia política e bélica, portanto, verificaremos que o conceito de razão de Estado, que é usado a partir da Renascença, e que está presente na obra de Tácito sobre Roma, na realidade já era praticado na Política do Oriente Próximo, não só na opressão faraônica sobre os hebreus, mas também na própria estratégia de José, hebreu que governava o Egito e que levou toda a população a tornar-se escrava de Faraó, bem como, conforme vimos nos exemplos acima, na História de Israel e de outros povos.
A Razão de Estado pode ser verificada no conceito de Maquiavel de que ao príncipe não importa “incorrer na fama de ter certos defeitos, defeitos estes sem os quais dificilmente poderia salvar o governo, pois que, se considerar bem tudo, encontrar-se-ão coisas que parecem virtudes e que, se bem praticadas, lhe acarretariam a ruína, e outras que poderão parecer vícios e que, sendo seguidas, trazem a segurança e o bem-estar do governante”.(Maquiavel, O Príncipe, Cap. XV, p. 64. Os Pensadores. 2. ed. S. Paulo: Abril, 1979).
E Napoleão, ao comentar a afirmação de Maquiavel de que “la grandeza de los crímenes borrará la vergüenza de haberlos cometido”, afirma: “Triunfad siempre, aunque sea por los peores medios, y siempre os darán la razón”. (Apud Guillermo Fraile, Historia de la Filosofía, Vol. III,p. 303).
Poderíamos concluir essa breve abordagem da presença da Razão de Estado em fatos narrados na Bíblia fazendo uma comparação entre um texto do AT e um do Evangelho.
Vejamos o caso de Moisés, narrado no Êxodo. Apesar dos elementos mitológicos e idealizados dessa narrativa, Moisés é reconhecido como um personagem verdadeiro da História. Por ter liderado um povo que não tinha território por 40 anos, Rousseau o considerou o maior líder da antigüidade, e Freud afirma que Moisés, por ter comandado 600 mil homens, era mais que um líder sacerdotal e poderia ser considerado como um General formado pelo Egito.
Em torno dele havia uma esperança de caráter religioso e político. Nesse caso, a religião era uma ameaça à hegemonia, e poderíamos constatar, como reação, um dos primeiros registros de uma Razão de Estado por parte do rei egípcio que reinou após a morte de José. Para livrar-se da ameaça de um futuro libertador hebreu, o rei ordenou que os meninos recém-nascidos fossem mortos. O texto afirma: “O rei do Egito ordenou às parteiras hebréias, dizendo: Quando servirdes de parteira às hebréias, examinai: se for filho, matai-o; mas se for filha, que viva”. (Êx 1:15-16)
As parteiras deveriam logo afogar a criança no Rio Nilo, caso fosse do sexo masculino. Porém, por temor a Deus, não obedeceram a essa ordem homicida. Logo o rei do Egito mudou sua estratégia, como diz o texto: “Então ordenou Faraó a todo o seu povo, dizendo: a todos os filhos que nascerem aos hebreus lançareis no Nilo, mas a todas as filhas deixareis viver”. (Êx 1: 22) . Dessa forma, a perseguição passaria a ser praticada pela própria população, não só pelas autoridades. Mas o menino Moisés adentra o palácio como filho adotivo de uma princesa, é educado como príncipe e posteriormente liberta seu povo de origem.

Em relação à perseguição ao futuro libertador, há semelhanças entre essa narrativa do Êxodo e a narrativa do Evangelho de Mateus sobre o nascimento de Cristo, que foi interpretado por Herodes como uma ameaça à sua hegemonia. De acordo com o Evangelho, o rei da Judéia, procurando eliminar a ameaça de um futuro rei dos judeus, “mandou matar todos os meninos de Belém e de todos os seus arredores, de dois anos para baixo” (Mt 2:16). Aqui também já se pode verificar o uso da Razão de Estado.
Nos dois casos, isto é, em relação a Moisés e a Jesus, a Razão de Estado é tão contraditória e oportunista que admite que a autoridade civil se proclame como uma divindade ou um filho dos deuses e, ao mesmo tempo, mande assassinar crianças recém-nascidas.
Na obra Quo Vadis?, Henryk Sienkiewicz aplica o conceito de Razão de Estado a Nero, denunciando a prática antiga desse tipo de estratégia e de raciocínio pragmático pelos perseguidores dos cristãos. De acordo com sua narrativa literária, o Senador Sêneca afirmara que "os cristãos, posto que não tivessem incendiado Roma, deviam ser exterminados a bem da cidade, e que o massacre se justificava pela Razão de Estado”.
A obra também atribui a Nero a seguinte afirmação: “Os atos de um homem podem ser cruéis, quando o homem não o é”. E um dos mais leais servos de Nero, líder da Guarda Pretoriana, Tigellinus, teria dito para justificar o incêndio de Roma: “Não existem razões em ordens imperiais”.
E infelizmente, como vimos, esse procedimento é bem mais antigo, localizável também em líderes do povo de Deus, e denunciado por seus profetas.

domingo, 4 de julho de 2010

Hobbes: um profeta Pós-Reforma?

Ao meu saudoso pai, Epaminondas Soares de Carvalho, Presbítero Emérito da IPI do Brasil (1925-2008)

Do ponto de vista do contexto de suas idéias, é fundamental observar que o pensamento de Hobbes a respeito da soberania absoluta tinha antecedentes na História da Inglaterra, especialmente no caso de Henrique VIII (1491-1547). Este, em 1527, como pretendia repudiar sua mulher Catarina de Aragão e se casar com Ana Bolena, enfrentou a oposição do Papado, o qual, mesmo que estivesse defendendo os princípios da moral cristã em relação à família, apresentava elementos de controle social e político.
A rigor, em relação à soberania, os reis vinham de uma tradição de poligamia que deveria ser pensada não só em relação à moral social em diferentes povos, mas também em relação à própria razão de estado, pois, por exemplo, enquanto se pregava a fidelidade conjugal nos próprios profetas de Israel, os reis tomavam as mulheres que queriam, e enquanto a Igreja pregava sobre a família, os membros do clero não constituíam família, ou negavam o celibato na prpatica etc.
A interferência do Papado na sucessão do trono e na decisão de um monarca em relação ao seu divórcio e novo casamento poderia ser um bom exemplo daquilo que Hobbes viria a chamar, mais tarde, de usurpação do poder civil pela Igreja. Contra essa presunção absurda, Hobbes afirmará no Leviatã (1651): “Seja qual for o poder eclesiástico que assumam..., seu próprio direito, muito embora lhe chamem o direito de Deus, não passa de usurpação”. (Os Pensadores, 2. ed., p. 396).
Em 1534 Henrique VIII rompeu com Roma e o Parlamento o nomeou chefe supremo da Igreja Anglicana. Hobbes afirma aceitar como canônicos os livros reconhecidos pela autoridade da Igreja Anglicana e diz que o que entende “por livros das Sagradas Escrituras aqueles que devem ser o Cânone, quer dizer, as regras da vida cristã” e que “o problema das Escrituras é o problema de saber o que é lei, tanto natural quanto civil, para toda a cristandade”. (Idem, p. 225).
O pensador, assim, nesse aspecto adota uma interpretação da Bíblia reduzindo-a aos problemas da obediência civil, ou seja, ao reino os homens. Como faz na obra Do Cidadão (1642), reduzindo o que é essencial à salvação à afirmação: Só há salvação em Cristo”, buscada no Credo Niceno, no Leviatã ele afirmará:
“As Escrituras foram escritas para mostrar aos homens o reino de Deus, e preparar seus espíritos para se tornarem seus súditos obedientes; deixando o mundo, e a filosofia a ele referente, às disputas dos homens, pelo exercício de sua razão natural”. (Id., p. 49)
Hobbes parte da premissa de que “o conhecimento de toda lei depende do conhecimento do soberano poder”, isto é, de quem reina, mas apesar de suas críticas à Igreja, no Cap. XXX do Leviatã ele afirma “os súditos devem aos soberanos simples obediência em todas as coisas nas quais a sua obediência não é incompatível com as leis de Deus”. (Idem, p. 211). Deve, pois, diz o pensador, o cidadão saber o que são as leis de Deus, para saber se o que a lei civil ordena é contrário a elas ou não, pois, se não tiver esse conhecimento, poderá obedecer excessivamente ao poder civil e ofender a Divina Majestade ou, “com receio de ofender a Deus”, poderá transgredir os “mandamentos do Estado”. (Idem)
Como Hobbes deriva a legitimidade de qualquer religião do poder soberano, na realidade o cidadão deve, primeiro, obediência ao poder civil, que é a Pessoa Soberana, isto é, a instituição que lhe dá as garantias da vida, da liberdade e da paz civil. Logo, afirma o filósofo, nenhuma doutrina contrária a essa paz deverá ser ensinada na República. E como o caráter da associação é primeiramente civil, segue-se que a instituição eclesiástica, como qualquer outra, deverá submeter-se- ao soberano civil.
No cap. XLVI o pensador argumentará contra a Inquisição, dizendo que ela é um erro que não foi aprendido da Filosofia Civil de Aristóteles, do pensamento de Cícero ou de qualquer outro filósofo pagão. A inquisição estendia o poder dos cânones da Igreja aos próprios pensamentos e às consciências dos homens, mesmo que o discurso e a ação desses não se contradissessem, e punia aqueles que afirmavam a verdade de seus pensamentos, ou os constrangia a mentir, por medo do castigo.
A Igreja, por isso, diz Hobbes, laborava na mentira e na desobediência, a qual se dava de forma tripla: à razão, por negar a verdade; a Deus, que é a fonte de toda a verdade e à lei civil, pois se esta permitia a pluralidade de credos. (Idem, p. 394). Ora, se o próprio poder civil adotava a tolerância religiosa, por que a Igreja, que a ela deveria se submeter, controlaria as próprias consciências?
O totalitarismo dos imperadores romanos que perseguiam os cristãos foi imitado pela Igreja, que perseguiu tanto a cristãos discordantes quanto a não cristãos que laborassem na verdade, através da razão natural. Por isso, a Igreja não só usurpava o poder civil através do paulatino controle das consciências e do incentivo à desobediência civil, mas tornou-se ela mesma uma instituição herética, por obrigar quem conhecia a verdade a dizer a mentira. Para Hobbes, porém, quem deveria julgar se alguém era herege ou não seria o Estado, pois o que estava em jogo, agora, era a paz civil, e toda doutrina contrária a esta não deveria ser ensinada.
Hobbes, assim, ao demonstrar isso, poderia ser comparado a um profeta pós-Reforma que defende a obediência civil e a obediência a Deus, a qual permite tanto a desobediência às leis que se opõem à sua Palavra quanto ao clero decadente.
Seu objetivo é submeter a autoridade da Igreja ao poder civil e nesse sentido afirma que os textos das Escrituras, por si mesmos, não podem ser feitos leis a não ser quando esse poder é concedido pela autoridade da República, como verificamos na citação abaixo:
“E não são as Escrituras, em todos os textos que constituem lei, feitas lei pela autoridade do Estado, e consequentemente, uma parte da lei civil?”. (Idem, p. 394).
Da mesma forma, o filósofo afirma que os indivíduos particulares não têm permissão para interpretar a lei civil por seu próprio espírito, incluindo aí, obviamente, os líderes da instituição eclesiástica que pretendiam interpretar a lei civil de acordo com seus interesses, como ele já adiantara no Cap. XII do Leviatã, afirmando que a Igreja tinha leis e tribunais particulares, em favor de seus próprios interesses.
Semelhantemente, isto é, procurando reduzir a soberania ao Estado, Hobbes afirma que a pregação e o ensino do Evangelho e das Escrituras não deveria ser restrita aos que eram ordenados pela Igreja, mas, argumenta, desde que o Estado o permitisse, poderia ser feita por qualquer cidadão, pois do contrário a Igreja estaria negando uma liberdade concedida pelo poder civil, como afirma o filósofo:

“Um erro do mesmo tipo é também quando alguém exceto o soberano restringe em qualquer homem aquele poder que o Estado não restringiu, como fazem aqueles que se apropriam da pregação do Evangelho para uma certa ordem de homens, quando as leis o permitiram. Se o Estado me dá a liberdade para pregar, ou ensinar, isto é, não mo proíbe, nenhum homem mo pode proibir. Se me encontro entre os idólatras da América, deverei pensar que eu, que sou um cristão, muito embora não tenha ordens, cometo um pecado se pregar Jesus Cristo até ter recebido ordens de Roma? Ou que, tendo pregado, não devo responder a suas dúvidas e fazer-lhes uma exposição das Escrituras, isto é, que não devo ensinar?”.
Essa tese de Hobbes, bem como as demais citadas, sobre o excesso de poder do Papado, além de ser coerente com sua filosofia civil, ainda que não cite Lutero ou Calvino, pode ser claramenre deduzida de uma das doutrinas básicas da Reforma: o sacerdócio universal de todos os crentes.
Eis aí um mais um legítimo herdeiro da Reforma. Ele, que reconhecia que sua obra causava na Itália, a sede do Papado, maior impacto do que a obra de Lutero e de Galileu juntas.