sábado, 31 de outubro de 2009

Tópicos sobre a Primeira Parte do Leviatã: Do Homem

Prof. Drndo. Isaar Soares de Carvalho – Escrito originalmente em 2005, como aluno especial do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da USP, e revisado em 2009.
Hoje dedico este texto ao meu filho Thomas, presente de Deus, e minha alegria!

Na Introdução do Leviatã Hobbes afirma que o homem pode imitar a natureza e, através da arte, criar um homem artificial, o corpo político. Este, como o homem, é um organismo: pode ter força e saúde e como todo corpo, pode ficar doente e perecer.

Feito à imagem e semelhança de Deus, agora o homem cria. Ele diz: “Fiat” e dá origem, através das paixões e da razão, ao Estado, homem artificial que foi projetado para a defesa e a proteção dos cidadãos: “salus populi é seu objetivo”.

Na primeira parte da obra, partindo do princípio de que quem for exercer o governo sobre uma nação “deve ler, em si mesmo, não este ou aquele indivíduo em particular, mas o gênero humano”, ele examina a matéria e o artífice do homem artificial, isto é, o próprio homem, propondo um novo “conhece-te a ti mesmo”, rejeitando o conhecimento baseado em livros, no costume dos homens de conhecerem os outros sem se conhecerem a si mesmos.

Devido ao papel da teoria do conhecimento para a explicação da origem do Estado, afirma que as interpretações das sensações ou da percepção sensível, tais como aparecem em Aristóteles e nas universidades de sua própria época, são com freqüência um “discurso destituído de significado” (Leviatã, Os Pensadores, 1974, Cap. I, p. 14).

É um pressuposto de sua teoria do Estado e da ação política, portanto, a natureza do homem. Para bem governar, é necessário bem conhecer a natureza das coisas em relação ao homem: “... os caracteres do coração humano, emaranhados e confusos como são, devido à dissimulação, à mentira, ao fingimento e às doutrinas errôneas, só se tornam legíveis para quem investiga os corações” (Leviatã, Introdução, p. 10).

Nesse aspecto Hobbes fazia referência à natureza das coisas, antecipando pesquisas da Psicologia. A Ciência Moderna descobriu que o coração é o centro da circulação sangüínea, e por isso é considerado como a base da vida física: a ele é associado não só o vigor físico, mas também o sentido da vida moral. No século XX Erich Fromm publicou O Coração do Homem, demonstrando teses antecipadas e intuídas por Hobbes sobre a maldade do homem interior. Mas é possível que Hobbes fale do coração em relação ao pensamento judaico, para o qual este é a faculdade e a sede da sensibilidade, da vontade, das paixões, afeições, dos desejos, apetites, da inteligência, dos propósitos e do caráter, significando o próprio interior do homem ou sua alma.

Sendo o Estado hobbesiano comparável a um grande homem, no qual se espelham a natureza e a razão de uma pessoa pequena, a explicação de sua gênese deve, pois, começar por uma antropologia, e enquanto na Filosofia Clássica o método era adequado ao objeto, na Filosofia Moderna o método o precede objeto. “Aquilo que vale como objeto é constituído pelo método” [Cf. Wolfgang Kerstin, “Thomas Hobbes – Filosofia Científica da paz e Fundação Contratual do Estado”, in: Filósofos do Séc. XVII. Uma Introdução. Lothar Kreimendahl,Org.].

Hobbes refuta duas autoridades tradicionais, a de Aristóteles e a da Igreja, que definiam o homem e a ação em termos metafísicos e teleológicos. A vida cívica não é tão natural como assegurava a tradição aristotélica, o que é afirmado por Hobbes tanto De Cive quanto no Leviatã. Ele demonstra, ao contrário de Aristóteles, que “a natureza separa os homens mais que os une” (Pierre Manent, Dicionário das Obras Políticas: “Leviatã”, p. 494).

E ao expor a oitava lei de natureza, critica o naturalismo ideológico de Aristóteles sobre a questão de decidir quem é o melhor homem nestes termos: “... Aristóteles afirma que por natureza alguns homens têm mais capacidade para mandar, querendo com isso referir-se aos mais sábios (entre os quais se incluía a si próprio, devido à sua filosofia), e outros têm mais capacidade para servir (referindo-se com isto aos que tinham corpos fortes, mas não eram filósofos como ele); como se senhor e servo não tivessem sido criados pelo consentimento dos homens, mas pela inteligência, o que não só é contrário à razão, mas é também contrário à experiência” (Leviatã, Cap. XV, p. 95).

A cooperação entre os membros da sociedade deve-se apenas às vantagens gozadas por eles individualmente. A sociedade é formada por pessoas condicionadas por motivos egoísticos e só se transforma em comunidade devido à existência de um poder soberano. Hobbes reconhece a necessidade da criação do Estado tanto para limitar esse egoísmo quanto para permitir a liberdade dos homens e a paz social, pois para ele a falta de paz interna em seu contexto era conseqüência de não saberem os homens a quem obedecer em sã consciência.

As desordens da Inglaterra decorriam primeiramente disso. A obediência á condição e motor da vida social. O conflito entre o poder civil e o religioso – a divergência de opiniões – indica que o homem não é animal político ou social por natureza. Ele não é naturalmente cidadão. A divergência de opiniões é capaz de dividir o corpo político. Porém, a guerra civil não é o único motivo para se defender a existência de um poder soberano, pois em tempos de paz se observa o temor, a desconfiança e a agressividade e “a vida do homem em sociedade é dominada pelo amor próprio, pela vanglória, pelo desejo de levar vantagem sobre o vizinho e de fazer reconhecer sua superioridade” (Pierre Manent, op. cit.,p. 494-495 e cf.Leviatã, cap. XIII).

O poder soberano reconhecido será capaz de conter a destruição e a guerra de todos contra todos, nascida do amor próprio e da ausência de um poder comum que pusesse a todos em respeito. Para Hobbes, “ideais como contrato, representação e responsabilidade não tinham sentido, a menos que apoiados por um poder soberano” (George Sabine, História das Idéias Políticas, Vol. II, p. 518).

No Cap. XIII do Leviatã Hobbes interpreta a natureza humana como fadada à autodestruição caso não haja um poder capaz de colocar a todos em respeito, concluindo pela necessidade do Estado como uma solução da razão diante dos apelos das paixões por uma vida segura, a qual é impossível no estado de natureza. A própria natureza egoísta dos homens os leva a fazerem um pacto pelo qual alienam o poder a uma pessoa soberana que os represente, a qual tanto pode ser um indivíduo quanto uma assembléia. Em relação aos Caps. XIII e XVI, que trata do estado de natureza e do pacto que cria a pessoa artificial, a qual é uma personificação, isto é, uma representação, Kerstin afirma que “em relação ao mundo das coisas a razão é racionalidade técnica e em relação ao mundo dos homens é racionalidade estratégica” (Wolfgang Kerstin, op. cit., p. 71).

Os sujeitos da ação se vêem como parceiros, mas também “se encaram um ao outro exclusivamente no horizonte dos seus próprios interesses; o outro é útil ou prejudicial para os planos pessoais; o interesse fundamental de cada pessoa visa o aumento de poder; o homem hobbesiano, como ser racional, é necessariamente um ser de poder, porque a razão se mostra precisamente na capacidade de pôr à sua disposição meios utilitários...” (Idem, p 73-74).

No Cap. XVI Hobbes desenvolve a tese do Estado como pessoa fictícia ou artificial, numa conclusão da Primeira Parte, relacionada com o que dissera na Introdução sobre a arte e o artificial. O “autor” é quem delega ou comissiona, o representante age por autoridade.

O caráter soberano do Estado hobbesiano pode ser verificado na afirmação de que “quando o ator faz um pacto por autoridade, obriga através disso o autor”, isto é, a multidão, o que é confirmado em sua afirmação de que o representante comum, quando tem autoridade sem limites, recebe-a de cada membro da multidão, os quais passam a ser os autores de todos os seus atos, o que será reafirmado no Cap. XVII, onde ele deixará claro que se estabelece uma relação entre a pessoa soberana (representante ou ator) e os súditos (autores).

Hobbes evoca a lei de natureza segundo a qual os contratos devem ser cumpridos, alertando sobre o cuidado que se deve tomar ao fazer um contrato em relação à autoridade do ator ou do autor, pois os pactos deverão ser cumpridos, mesmo que violem a lei de natureza. O mais importante, porém, em relação à multidão e à pessoa soberana, é sua afirmação de que “ninguém é obrigado por um pacto do qual não é autor” (Leviatã, Cap. XVI,, p. 101. Como contratualista, ele postula a tese de que a multidão deve fazer uma transferência total do poder de governo, isto é, um “pactum subiectionis”.

Ao mesmo tempo em que fala da personificação do Estado, argumenta em favor de sua necessidade, pois sem ele não poderia haver outras personificações: os atores, isto é, representantes de outrem, seja de uma instituição, de Deus ou de outro homem, só recebem sua legitimação devido à pessoa soberana que foi instituída. Antes dela não havia povo, mas multidão, não havia direito à propriedade, mas uma guerra de todos contra todos, nem havia representação reconhecida de Deus, pois é o Estado quem legitima a própria religião. Torna-se claro que, quantos aos direitos privados, eles só existem devido à alienação do poder à pessoa soberana, que os garante, pois antes não havia propriedade, mas o conflito permanente. Bobbio afirma, em relação ao cap. XIV do Leviatã, que “a esfera privada coincide com o estado de natureza e se dissolve inteiramente na esfera pública, isto é, nas relações de domínio que ligam o soberano ao súdito” (Norberto Bobbio, A Teoria das Formas de Governo, p. 108). Assim, o homem-artífice cria esse “Deus Mortal ao qual devemos abaixo do Deus Imortal, nossa paz e defesa” (Leviatã, cap. XVII, p. 110).

Hoje podemos questionar se essa pessoa soberana é mesmo capaz de impor medo a todos, e se de fato garante a liberdade e a paz dos súditos, devido às situações de miséria social que vivemos, direta ou indiretamente. A sociedade capitalista, mesmo com a evolução de suas instituições, mantém-se num estado de guerra. As instituições jurídicas não garantem a paz, o que é devido à própria natureza. No De Cive, ao mesmo tempo em que o Estado aparece como solução para a paz civil, está implícita uma insolubilidade contínua, devido à natureza egoísta do homem, a qual se prolonga para as própria relações internacionais.

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

O reino sacerdotal e o poder eclesiástico de acordo com Hobbes

Em resposta a duas perguntas de Guilherme Rocha Botelho, acadêmico de Direito da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.


A - O reino sacerdotal em Israel

1 – Em Israel, que era um reino sacerdotal, Moisés tinha tanto a autoridade civil quanto a religiosa e como lugar-tenente de Deus podia delegar o poder ao sumo sacerdote e aos demais sacerdotes, conforme o texto a seguir:

“Disse o SENHOR a Moisés: Toma Josué, filho de Num, homem em quem há o Espírito, e impõe-lhe as mãos; apresenta-o perante Eleazar, o sacerdote, e perante toda a congregação; e dá-lhe, à vista deles, as tuas ordens. Põe sobre ele da tua autoridade, para que lhe obedeça toda a congregação dos filhos de Israel”. (Números 27: 18 a 20)

Aqui, a autoridade de Moisés é sacerdotal, mas claramente se vê que, diante da congregação dos filhos de Israel, ele era o líder político que legitimava o poder do sacerdote a respeito das questões religiosas (“põe sobre ele da tua autoridade”).

2 – O primeiro rei de Israel, Saul, recebeu uma unção do profeta Samuel, como escolhido de Deus para reinar, e foi por desobedecer à palavra de Deus, enviada através de Samuel, que tinha a autoridade sacerdotal, que Saul perdeu o reino, bem como não teve dinastia real, conforme os textos abaixo, de I Samuel:

“Esperou Saul sete dias, segundo o prazo determinado por Samuel; não vindo, porém, Samuel a Gilgal, o povo se foi espalhando dali. Então, disse Saul: Trazei-me aqui o holocausto e ofertas pacíficas. E ofereceu o holocausto. Mal acabara ele de oferecer o holocausto, eis que chega Samuel; Saul lhe saiu ao encontro, para saudá-lo. Samuel perguntou: Que fizeste? Respondeu Saul: Vendo que o povo se ia espalhando daqui, e que tu não vinhas nos dias aprazados, e que os filisteus já se tinham ajuntado em Micmás, eu disse comigo: Agora, descerão os filisteus contra mim a Gilgal, e ainda não obtive a benevolência do SENHOR; e, forçado pelas circunstâncias, ofereci holocaustos. Então, disse Samuel a Saul: Procedeste nesciamente em não guardar o mandamento que o SENHOR, teu Deus, te ordenou; pois teria, agora, o SENHOR confirmado o teu reino sobre Israel para sempre. Já agora não subsistirá o teu reino. O SENHOR buscou para si um homem que lhe agrada e já lhe ordenou que seja príncipe sobre o seu povo, porquanto não guardaste o que o SENHOR te ordenou” (I Sm13: 8 a 1 4)

“Então, disse Samuel a Saul: Espera, e te declararei o que o SENHOR me disse esta noite. Respondeu-lhe Saul: Fala. Prosseguiu Samuel: Porventura, sendo tu pequeno aos teus olhos, não foste por cabeça das tribos de Israel, e não te ungiu o SENHOR rei sobre ele? Enviou-te o SENHOR a este caminho e disse: Vai, e destrói totalmente estes pecadores, os amalequitas, e peleja contra eles, até exterminá-los. Por que, pois, não atentaste à voz do SENHOR, mas te lançaste ao despojo e fizeste o que era mau aos olhos do SENHOR? Então, disse Saul a Samuel: Pelo contrário, dei ouvidos à voz do SENHOR e segui o caminho pelo qual o SENHOR me enviou; e trouxe a Agague, rei de Amaleque, e os amalequitas, os destruí totalmente; mas o povo tomou do despojo ovelhas e bois, o melhor do designado à destruição para oferecer ao SENHOR, teu Deus, em Gilgal. Porém Samuel disse: Tem, porventura, o SENHOR tanto prazer em holocaustos e sacrifícios quanto em que se obedeça à sua palavra? Eis que o obedecer é melhor do que o sacrificar, e o atender, melhor do que a gordura de carneiros. Porque a rebelião é como o pecado de feitiçaria, e a obstinação é como a idolatria e culto a ídolos do lar. Visto que rejeitaste a palavra do SENHOR, ele também te rejeitou a ti, para que não sejas rei. (I Sm 15: 16 a 23)

3 - De acordo com a teologia da aliança, os reis de Israel deveriam servir primeiro a Deus, como Deus único, conforme o primeiro dos 10 mandamentos, mas a maioria deles, bem como da parte do povo, quebrou a aliança com Deus, sendo castigados. Porém, da parte de Deus, essa aliança nunca foi quebrada, e seus profetas sempre falaram de arrependimento, tanto aos reis quanto ao povo, e de restauração vinda de Deus. Assim foi para quem esteve na Babilônia etc.

4 – O reino sacerdotal, de acordo com Hobbes, durou de Moisés a Saul, quando começou a Monarquia em Israel, e durou até o cativeiro na Babilônia. Depois, quando Ciro, rei da Pérsia, autorizou os judeus a voltarem e a restaurar o culto a Deus, sob sua tutela, começa novamente um reino sacerdotal, sob Esdras e Neemias. Aquela unidade política, porém Israel não mais teve, pois depois foi dominado por Alexandre e posteriormente por Roma.

B - A Origem e a sucessão do poder eclesiástico

A hierarquia da Igreja, nos tempos apostólicos, era feita de acordo com o carisma e as virtudes dos membros da comunidade:

1 – Jesus ensinou por três anos, e dentre os que estavam com ele escolheu doze para que fossem enviados para pregar às ovelhas perdidas da casa de Israel, e Lucas afirma o seguinte:

“Naqueles dias, retirou-se para o monte, a fim de orar, e passou a noite orando a Deus. E, quando amanheceu, chamou a si os seus discípulos e escolheu doze dentre eles, aos quais deu também o nome de apóstolos: Simão, a quem acrescentou o nome de Pedro, e André, seu irmão; Tiago e João; Filipe e Bartolomeu; Mateus e Tomé; Tiago, filho de Alfeu, e Simão, chamado Zelote; Judas, filho de Tiago, e Judas Iscariotes, que se tornou traidor. (Lucas 6:12-16)

2 - Quando Judas foi sucedido entre os 12, o texto bíblico fala das seguintes exigências, de acordo com Atos dos Apóstolos: “É necessário, pois, que, dos homens que nos acompanharam todo o tempo que o Senhor Jesus andou entre nós, começando no batismo de João, até ao dia em que dentre nós foi levado às alturas, um destes se torne testemunha conosco da sua ressurreição”. (Atos 1: 21-22).

3 – Os “diáconos”, como foram chamados pela tradição os escolhidos para atenderem aos necessitados, destes, especialmente as viúvas de origem grega, deveriam atender às seguintes exigências:

“Ora, naqueles dias, multiplicando-se o número dos discípulos, houve murmuração dos helenistas contra os hebreus, porque as viúvas deles estavam sendo esquecidas na distribuição diária. Então, os doze convocaram a comunidade dos discípulos e disseram: Não é razoável que nós abandonemos a palavra de Deus para servir às mesas. Mas, irmãos, escolhei dentre vós sete homens de boa reputação, cheios do Espírito e de sabedoria, aos quais encarregaremos deste serviço; e, quanto a nós, nos consagraremos à oração e ao ministério da palavra. O parecer agradou a toda a comunidade; e elegeram Estêvão, homem cheio de fé e do Espírito Santo, Filipe, Prócoro, Nicanor, Timão, Pármenas e Nicolau, prosélito de Antioquia. Apresentaram-nos perante os apóstolos, e estes, orando, lhes impuseram as mãos”. (Atos 6:1-6).

Observe que havia exigências para essa função (veja os destaques em negrito), e que a escolha foi feita pela comunidade – eis aí um sinal de democracia, comum entre os próprios judeus nalgumas ocasiões, como no caso da legitimação de Moisés como líder no Egito, pois ali ele foi reconhecido pelos anciãos de Israel.

Observe também que a autoridade sobre eles é local, não tem um caráter propriamente civil, faz parte de uma comunidade dentro da grande commonwealth que é o Estado, e é delegada de forma carismática, pela imposição das mãos dos apóstolos, os quais, como diz Hobbes, receberam o poder do próprio Cristo.

Por ser assim é que Hobbes afirma que os profetas, Cristo, os apóstolos e o Papa não tinham poder sobre o soberano civil, mas eram seus conselheiros, podendo ou não ser obedecidos por ele e ainda que um soberano professasse a fé em Cristo, suas decisões morais na área da ação política não faziam parte do credo, mas da natureza das coisas na Política.

4 – Quanto aos presbíteros, que faziam parte do ensino e da liderança da Igreja apostólica, o NT fala que eles eram eleitos pela comunidade e resolviam algumas questões em conselhos:

”E, promovendo-lhes, em cada igreja, a eleição de presbíteros...”. (Atos 14:23).
“... Então, se reuniram os apóstolos e os presbíteros para examinar a questão”.
“... Então, pareceu bem aos apóstolos e aos presbíteros...”. (Atos 15.6 e 22).

5 - Paulo deixou as seguintes exigências para a escolha de presbíteros e diáconos nas novas comunidades que eram fundadas:

5.1 - Presbíteros:

“É necessário, portanto, que o bispo seja irrepreensível, esposo de uma só mulher, temperante, sóbrio, modesto, hospitaleiro, apto para ensinar; não dado ao vinho, não violento, porém cordato, inimigo de contendas, não avarento; e que governe bem a própria casa, criando os filhos sob disciplina, com todo o respeito (pois, se alguém não sabe governar a própria casa, como cuidará da igreja de Deus?); não seja neófito, para não suceder que se ensoberbeça e incorra na condenação do diabo. Pelo contrário, é necessário que ele tenha bom testemunho dos de fora...”.

5.2 – Diáconos:

“Semelhantemente, quanto a diáconos, é necessário que sejam respeitáveis, de uma só palavra, não inclinados a muito vinho, não cobiçosos de sórdida ganância,
conservando o mistério da fé com a consciência limpa. Também sejam estes primeiramente experimentados; e, se se mostrarem irrepreensíveis, exerçam o diaconato. Da mesma sorte, quanto a mulheres, é necessário que sejam elas respeitáveis, não maldizentes, temperantes e fiéis em tudo. O diácono seja marido de uma só mulher e governe bem seus filhos e a própria casa”. (I Timóteo 3.2 a 11) .

Observe que, mesmo sendo uma instituição marcada pelo carisma, como dirá a Sociologia, é uma instituição que tem princípios morais que a distinguem da moral romana, por exemplo, em relação à família... etc.

6 – O próprio Pedro, que era contado entre os 12, e de fato tinha uma liderança entre eles, não seria a favor do domínio exercido pelo Papado sobre as consciências e sobre a propriedade das pessoas, bem como sobre a política.

Compare essa afirmação do apóstolo a seguir com o que citarei logo depois, de Hobbes:

Pedro:
“Rogo, pois, aos presbíteros que há entre vós, eu, presbítero como eles, e testemunha dos sofrimentos de Cristo, e ainda co-participante da glória que há de ser revelada: pastoreai o rebanho de Deus que há entre vós, não por constrangimento, mas espontaneamente, como Deus quer; nem por sórdida ganância, mas de boa vontade; nem como dominadores dos que vos foram confiados, antes, tornando-vos modelos do rebanho. (I Epístola de Pedro 5:1 a 3)

Hobbes:
“... Haverá alguém que não seja capaz de ver para benefício de quem contribuía acreditar-se que um rei só recebe de Cristo sua autoridade no caso de ser coroado por um bispo? Que um rei, se for sacerdote, não pode casar-se? Que se um príncipe nasceu de um casamento legítimo ou não é assunto que deve ser decidido pela autoridade de Roma? Que os súditos podem ser libertos de seu dever de sujeição, se a corte de Roma tiver condenado o rei como herege?... De modo que posso atribuir todas as mudanças de religião no mundo a uma e à mesma causa, isto é, sacerdotes desprezíveis, e isto não apenas entre os católicos, mas até naquela Igreja que mais presumiu de Reforma”.
(Final do Cap. XII do Leviathan, Os Pensadores).


C - O poder pertence a Cristo, Senhor da Igreja

Como ele mesmo disse, de acordo com Mateus 28: 18: “Toda a autoridade me foi dada no céu e na terra”.
O mesmo é afirmado em João 19: 10-11:
“Então, Pilatos o advertiu: Não me respondes? Não sabes que tenho autoridade para te soltar e autoridade para te crucificar? Respondeu Jesus: Nenhuma autoridade terias sobre mim, se de cima não te fosse dada; por isso, quem me entregou a ti maior pecado tem”.

E de acordo com o Evangelho, Cristo se entregou a Pilatos por nossos pecados, e ressuscitou para nossa justificação, conforme ensina Paulo, que não pregou um Evangelho diferente dos demais apóstolos. E o próprio Cristo afirmou, diante de Pilatos, de acordo com João 18.36: “O meu reino não é deste mundo. Se o meu reino fosse deste mundo, os meus ministros se empenhariam por mim, para que não fosse eu entregue aos judeus; mas agora o meu reino não é daqui”.

Portanto, mesmo os reis podem fazer parte do Reino de Deus e a ele se submeterem, mas para Hobbes, a soberania civil não pode submeter-se à Igreja, se não, pecaria contra o princípio da não contradição, pois “soberania e caráter absoluto do governo são unum et idem”, conforme afirma Bobbio em seu livro A Teoria das Formas de Governo.

E não pensemos que esse Estado é tão absoluto assim, pois ele só deverá ser obedecido enquanto preservar o maior bem da comunidade, a paz civil.

Enfim, Hobbes considera que a Igreja só será reconhecida como instituição civil pelo Estado, no capítulo do Leviathan em que explica os significados da palavra “Igreja”. Porém, afirma noutra parte que ninguém, por obedecer ao poder civil, deverá perder a vida eterna, que é um bem maior, indubitavelmente, e foi nesse sentido, pois, que Pedro disse: “Antes, importa obedecer a Deus do que aos homens”. (Atos 5:29)

D - Sendo assim, onde está o reino de Deus? Quem dele participa?

Ora, eis, de acordo com Hobbes, quem dele participa:

“No reino de Deus, não consideramos como seus súditos os corpos inanimados ou irracionais, embora estejam subordinados ao poder divino; e não os contamos, porque eles não entendem o que sejam os mandamentos e ameaças de Deus; nem tampouco os ateus, porque não acreditam que Deus exista; nem mesmo os que, acreditando na existência de Deus, não crêem, contudo, que ele governe estas coisas inferiores; pois estes últimos, embora sejam governados pelo poder de Deus, não reconhecem, porém nenhum de seus mandamentos, nem temem suas ameaças. Considera-se pertencente ao reino de Deus, portanto, apenas esses que confessam ser ele o regente de todas as coisas, e acreditam que ele tenha dado mandamentos aos homens, e fixado castigos para quem os descumprir. Os demais não devemos chamar súditos, mas inimigos, de Deus”. (Do Cidadão, Parte III: Religião)

Hobbes, indiretamente, consciente ou inconscientemente, está afirmando o mesmo que Cristo:
“Interrogado pelos fariseus sobre quando viria o reino de Deus, Jesus lhes respondeu: Não vem o reino de Deus com visível aparência. Nem dirão: Ei-lo aqui! Ou: Lá está! Porque o reino de Deus está dentro de vós”. (Lucas 17: 20-21)


Conclusão

A questão da obediência civil e da obediência ao reino de Deus inquietava também a outros grandes homens do século XVII.
Hobbes deu uma solução baseada na Filosofia Civil e nas Escrituras, reconhecendo não só a necessidade da obediência civil, mas também que o Leviatã é um deus mortal, abaixo do Deus imortal.
Se fôssemos para a área da Música, veríamos o Reino de Deus ser defendido com a mais pura arte e devoção na obra do grande compositor Georg Friedrich Häendel, que possivelmente estava dialogando com o contexto social, político e religioso da Inglaterra ao compor O Messias, cujo coro mais famoso, Halleluiah, afirma: “O reino deste mundo se tornou de nosso Senhor e do seu Cristo e Ele reinará para sempre e sempre”, onde o gênio insiste em repetir: “Rei dos Reis e grande Senhor”.

Proclamar, gritar, com devoção e arte: “King of Kings and Lord of the Lords”, naquele contexto, não seria simplesmente a repetição do coro de um grande Oratório, mas poderia ser, antes de tudo, uma mensagem profética, confirmando a doutrina apostólica de que “antes importa obedecer a Deus do que aos homens” (Atos 5:29).
Como disse Isaías: “The voice of him that crieth in the wilderness, Prepare ye the way of the LORD, make straight in the desert a highway for our God" (Is 40:3 - King James version, a mesma que Hobbes leu)

Ao meu ver, todo o Messias é inspirado nessa "voz de um que grita no deserto: Preparai o caminho do Senhor, fazei no ermo vereda a nosso Deus".

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

As Escrituras na argumentação de Hobbes sobre a Soberania Civil

Comunicação apresentada no Colóquio Internacional Hobbes:
Natureza, História e Política” em 06-10-2009 - Departamento de Filosofia da USP
Autor: Isaar Soares de Carvalho - Doutorando em Filosofia – UNICAMP
Orientador: Prof. Dr. João C. K. Quartim de Moraes
À memória de meu pai, Presbítero Emérito da IPI do Brasil, Epaminondas Soares de Carvalho, que foi alfabetizado através das Escrituras.

OBJETO DE ESTUDO
Nosso objetivo é examinar forma como Thomas Hobbes interpreta as Escrituras para corroborar sua tese de que o poder civil está acima de qualquer instituição social ou política, principalmente, em seu contexto, sobre a instituição eclesiástica.

OS LIMITES DA OBEDIÊNCIA CIVIL E RELIGIOSA
Hobbes afirma:
“Os súditos devem aos soberanos simples obediência em todas as coisas, de onde se segue que sua obediência não é incompatível com as leis de Deus”. (Leviathan, XXX).
Porém, Hobbes parte da premissa de que “o conhecimento de toda lei depende do conhecimento do soberano poder”. (Leviathan, XXXI).

Conhecendo as Leis divinas e as civis
O cidadão deve, pois, conhecer as leis de Deus (este detém o soberano poder) para distinguir se o que a lei civil ordena é contrário a elas ou não. Com isso evitará o dilema de pecar contra o poder civil ou contra a religião:

Eis o dilema do cidadão do Séc. XVII:
1 – Se obedecesse excessivamente ao poder civil, ofenderia a Divina Majestade.
2 – Mas “com receio de ofender a Deus”, poderia transgredir os “mandamentos da república”.

PRINCIPAIS DEMANDAS ATENDIDAS PELA OBRA DE CIVE
Na obra Do Cidadão há uma dialética entre ser cidadão do Reino de Deus e da Pólis terrestre, demonstrada no subtítulo do livro, onde Hobbes afirma que fará uma dissertação a respeito do homem como membro de uma sociedade primeiro secular, depois sacra, que falará dos elementos da filosofia civil de acordo com as leis naturais e divinas, e que demonstrará qual é a origem da justiça e em que consiste a essência da religião cristã, e também da natureza, limites e qualificações do comando e da sujeição.

A IMPORTÂNCIA DAS ESCRITURAS NA DEDICATÓRIA DO LEVIATHAN
Na Dedicatória do Leviathan encontra-se uma afirmação que demonstra que, além de adotar uma concepção do Estado que se opõe ao magistério eclesiástico, Hobbes se vale das Escrituras adotando uma nova hermenêutica, para defender a superioridade do poder civil sobre todas as esferas da vida social, principalmente a religião. A afirmação à qual nos referimos é a seguinte:

“O que talvez possa ser tomado como grande ofensa são certos textos das Sagradas Escrituras, por mim usados com uma finalidade diferente da que geralmente por outros é visada. Mas fi-lo com a devida submissão. E também, dado ao meu assunto, porque tal era necessário. Pois eles [os textos] são as fortificações avançadas do inimigo, de onde este impugna o poder civil”. (Leviathan, Dedicatória).

A idéia central dessa afirmação aparecerá ao longo do Livro, e o que é indicado na Dedicatória será demonstrado de forma recorrente no texto dirigido ao “leitor sem medo”, como demonstra Renato Janine Ribeiro, texto que se encerrará com a corajosa afirmação, dirigida tanto à Igreja quanto ao poder civil, de que “a verdade que não se opõe aos interesses ou aos prazeres de ninguém é bem recebida por todos”. (Leviathan, Revisão e Conclusão)

HOBBES E A CRÍTICA BÍBLICA
Em relação à Bíblia, Hobbes antecipa teses hoje conhecidas sobre a História da formação de seus textos, porém pouco se lhe credita sobre sua contribuição à Crítica Bíblica em nosso tempo. Em relação às datas de redação ele enfatiza em primeiro lugar a afirmação de Gn 12:6: “Atravessou Abrão a terra até Siquém, até o carvalho de Moré. Nesse tempo os cananeus habitavam essa terra”.

Outras citações que indicam a posterioridade dos textos:
Afirmações como essa, abundantes no Antigo Testamento, indicam que muitos textos foram escritos longo tempo após a ocorrência dos fatos narrados. Outros textos usam expressões indicativas disso, tais como:

A expressão “até ao dia de hoje” aparece em vários textos do Pentateuco, bem como em outros livros.
Gn 35:20: “Sobre a sepultura de Raquel levantou Jacó uma coluna que existe até ao dia de hoje” (Gn 35:20). O que confirma que o texto foi escrito muito tempo depois do fato narrado.

Jz 1:21: “Os jebuseus habitam com os filhos de Benjamin em Jerusalém até ao dia de hoje”.
Jz 1,26: “E edificou uma cidade, e lhe chamou Luz; este é o seu nome até ao dia de hoje”.
Jz 6:24: “Ainda até ao dia de hoje está o altar em Ofra”.
Jz 10:4: “E tinham trinta cidades, a que chamavam Havote-Jair, até ao dia de hoje, as quais estão na terra de Gileade”.
Jz 15:19: “ Daí chamar-se aquele lugar Em-Hacoré até ao dia de hoje”.

O Livro de Juízes seria um texto bem tardio
É impressionante a observação de Hobbes sobre Juízes 18:30, que diz: “Os filhos de Dã levantaram para si aquela imagem de escultura; e Jônatas, filho de Gerson, o filho de Manassés, ele e seus filhos foram sacerdotes da tribo dos danitas, até ao dia do cativeiro do povo”. Isso indica, de acordo com ele, que o texto é posterior ao cativeiro babilônico.

MOISÉS E A AUTORIA DO PENTATEUCO
Sobre o Pentateuco Hobbes afirma que Moisés “escreveu tudo o que aí se diz que escreveu”, isto é, as afirmações do texto que dizem claramente que eleu, são por Hobbes consideradas fidedignas. Eis os textos em que essas expressões aparecem:
Êx 17:14: “Então disse o Senhor a Moisés: Escreve isto para memória num livro, e repete-o a Josué...”.
Êx 24:3s: “Veio, pois, Moisés, e referiu ao povo todas as palavras do Senhor e todos os seus estatutos... Moisés escreveu todas as palavras do Senhor...”
Dt 31:9: “Esta lei escreveu-a Moisés e a deu aos sacerdotes...”. Trecho que confirma a tese de Hobbes sobre o reino sacerdotal de Israel.
Dt 31:22: “Moisés naquele mesmo dia escreveu este cântico”.
Êx 34:28: “Escreveu nas tábuas as palavras da aliança, as dez palavras”. A narrativa inicialmente afirma que foi Deus quem escreveu as segundas tábuas, mas conclui dizendo que foi Moisés. Porém Dt 10:4 afirma: “... Escreveu o Senhor nas tábuas...”. Isso indica a posterioridade, as tradições orais, a autoria múltipla do texto, bem como seu caráter sagrado.
Nm 33:2: “Escreveu Moisés as suas saídas, caminhada após caminhada...”
Dt 31:24: “Tendo Moisés acabado de escrever todas as palavras desta lei num livro...”

ALGUMAS FONTES USADAS PELOS AUTORES DO AT
Hobbes observa várias fontes do AT, tais como:
O Livro das Guerras do Senhor (Nm 21:14)
O Livro dos Justos (Js 10:13; II Sm 1:18)
A afirmação: "Josué escreveu estas palavras no livro da lei de Deus" (Js 24:26) amplia o conceito de Livro da Lei, não mais restrito ao Pentateuco, ou seria Josué um co-autor deste?
Os escritores utilizaram outras fontes, citadas em Reis e Crônicas:
O Livro da História de Salomão (I Rs 11:41) Livro da História dos Reis de Israel (I Rs 14:19)
O Livro da História dos Reis de Judá (I Rs 14: 29)
Pelo que aqui verificamos sobre o criticismo literário de Hobbes, portanto, o Tratado Teológico-Político de Espinosa não é, como pretendem alguns, a primeira obra a examinar a história da formação dos textos bíblicos. Hobbes publica o Leviathan em 1651, e Espinosa publicará o Tratado 19 anos depois, em 1670, o que não se deve esquecer.

EXEMPLOS DE REFERÊNCIAS DE HOBBES À BÍBLIA COMO PARTE DE SUA ARGUMENTAÇÃO
A primeira vez que Hobbes se refere à Bíblia no De Cive é, possivelmente, quando usa a expressão:“... Através da justiça e da caridade, irmãs gêmeas da paz...”, referindo-se ao Salmo 85,10, que diz: “a justiça e a paz se beijaram”, trecho citado diretamente depois, quando ele examina as bases bíblicas da lei fundamental de natureza que ordena que se busque a paz. (De Cive, Parte I, Cap. IV, p. 87).

A abordagem hobbesiana dos 10 Mandamentos
A importância do recurso às Escrituras aparece de forma ainda mais explícita quando ele compara os Dez Mandamentos ou As Dez Falas (Assêret Hadibrot) aos deveres civis e aos direitos do soberano representante, no Cap. XXX do Leviathan:

60 % dos 10 mandamentos dizem respeito à Lei civil:

É relevante a observação de Hobbes de que os 4 primeiros mandamentos dizem respeito aos deveres para com Deus, enquanto os outros 6 referem-se aos deveres civis.
Deveres para com Deus
1º) Não ter outros deuses diante dele.
2º.) Não fazer para imagens de escultura, não adorá-las, nem lhes prestar culto.
3º.) Não tomar o nome de Deus em vão.
4º.) Santificar o dia do Sábado.

Deveres Civis
5º.) Honrar ao pai e à mãe
6º.) Não Matar
7º.) Não Adulterar
8º.) Não furtar. (6 a 8: Preservação da propriedade).
9º.) Não dizer falso testemunho.
10) Não cobiçar (“O só cobiçar já é injusto)”.

A Súmula dos 10 Mandamentos
A súmula dos 10 mandamentos encontra-se no amor a Deus sobre todas as coisas e no amor ao próximo como a si mesmo. A segunda tábua “se reduz a esse mandamento de caridade mútua, Amarás a teu próximo como a ti mesmo, assim como a súmula da primeira tábua se reduz ao amor a Deus”. (Leviathan, XXX)

As Leis Civis e a conservação da Vida
Em relação aos deveres civis nos 10 Mandamentos, Hobbes afirma que “entre as coisas tidas em propriedade, aquelas que são mais caras ao homem são sua própria vida e membros, e no grau seguinte (na maior parte dos homens) aquelas que se referem à afeição conjugal, e depois delas as riquezas e os meios de vida”. (Leviathan, XXX)

Outras sínteses da Lei de Deus e da Lei Civil na Bíblia
1 -“De tudo o que se tem ouvido, a suma é: teme a Deus, e guarda os seus mandamentos; porque isto é o dever de todo homem” (Ec 12,13).
2 - “Dai, pois, a César o que é de Cesar, e a Deus o que é de Deus” (Mt 22:21).
3 – “Tratai todos com honra, amai os irmãos, temei a Deus, honrai o rei”. (I Pd 2.17)

RELAÇÕES ENTRE POLÍTICA E RELIGIÃO
Numa imagem publicada na edição de 1651 do De Cive vê-se a própria seqüencia da argumentação de Hobbes: A Liberdade é conseqüência do Domínio e a Religião aparece encimada e parece não interferir na esfera política.
Um profeta, apóstolo, um sacerdote ou o próprio Papa serão apenas conselheiros do soberano, não tendo sobre ele autoridade, pois a soberania é, por natureza, absoluta. Mesmo que o soberano civil adote uma confissão de fé, isso não interferirá sobre a natureza das coisas na Política.

HAVERIA ALGUMA FORMA DE GOVERNO SUPERIOR PARA HOBBES?
“A prosperidade de um povo governado por uma assembléia aristocrática ou democrática não vem nem da aristocracia nem da democracia, mas da obediência e concórdia dos súditos; assim como também o povo não floresce numa monarquia porque um homem tem o direito de governá-lo, mas porque ele lhe obedece. Retirem seja de que Estado for a obediência (e conseqüentemente a concórdia do povo) e ele não só não florescerá, como a curto prazo será dissolvido”. (Leviathan, XXX)

“NÃO DE PRINCIPE, MAS DE CIVE
Contra as interpretações de Hobbes como absolutista, o Prof. Renato J. Ribeiro afirma:
“... Já se comentou, muito, que Hobbes escreve De Cive e não De Principe: interessa-se mais pela obediência que pelo exercício do poder. Ocupa-se mais do cidadão que do governante”. (“Thomas Hobbes o la paz contra el clero”, p. 23).
E conclui:
“... Ao afirmar que de um poder irresistível decorre direito absoluto, ele completa que tal poder é somente de Deus; homem nenhum é tão forte que outros não o possam vencer, por coligação, astúcia, ou opondo a seu sono a vigília; só Deus nunca dorme, só Ele tem direito absoluto. (Que lógica resta, então, aos que chamam Hobbes de ateu e defensor do direito absoluto dos reis?)”. [Idem, p. 23].

SERIA HOBBES UM DESCRENTE?

Hobbes e a Redenção:
“Nossa redenção foi levada a cabo em sua primeira vinda, pelo sacrifício mediante o qual se ofereceu na cruz por nossos pecados”.
(Leviathan, Cap. XLI).
A - “Há apenas um Deus”. (Do Cidadão, p. 309).
B - Ele refuta o Panteísmo, reconhecendo Deus como causa do mundo, como se verifica nessa afirmação: “Dizer que o mundo é Deus é dizer que não há causa dele, isto é, que não existe Deus”. (Leviathan, Cap. XXXI, p. 215)
C – Na Epistola Dedicatória de Do Cidadão ele diz: “Que o Deus do céu coroe Vossa Senhoria com longa vida nesta estação mortal, e, na Jerusalém celestial, com uma coroa de glória”. - Seria mera formalidade?
D – A obediência a Deus está em primeiro lugar:
“...Como devemos obedecer antes a Deus que aos homens...”. (Do Cidadão, III, XVIII, p. 359-60).
Ver Atos 5: 29: “...Antes importa obedecer a Deus do que aos homens”.
E – O que é necessário para a salvação:
“O propósito dos evangelistas prova que para a salvação é necessário apenas crer num só artigo – que Jesus é o Cristo” (Idem, p. 367).
Ver I Pd 1:9: “...Obtendo o fim da vossa fé, a salvação das vossas almas”.
F - Renato J. Ribeiro observa, na Introdução de Do Cidadão, que muitas discussões e divisões, e mesmo guerras, são feitas em torno de disputas teológicas que não dizem respeito ao essencial: a salvação.
G – Afirmava Hobbes que seu pensamento não poderia ser declarado herético, pois a doutrina do Leviathan não era contrária ao Credo Niceno, e não havia tribunal religioso que pudesse considerá-lo como tal: a Heresia é uma questão do soberano civil, não da Igreja.

Aspectos céticos de Hobbes em relação a alguns pontos da Religião

A – Sobre a ocorrência de Milagres: “... Se acontecer que, numa reunião, se passe o tempo contando histórias..., se um conta alguma maravilha, os demais narrarão milagres, se os tiverem, se não tiverem os inventarão”.(Do Cidadão: Parte I, Cap. I, p. 31, par. 2). No Leviathan ele afirma que não ocorrem mais milagres, os quais teriam durado até à época da Igreja Primitiva.
B – Hobbes declara ser impossível fazer pactos com Deus. Os que afirmavam fazê-los poderiam incitar à desobediência civil. Tanto em Do Cidadão quanto no Leviathan ele é cético quanto aos votos feitos a Deus. Apenas são válidos os pactos e votos legitimados pelo poder civil. (Do Cidadão: Parte I, Cap. II, p. 52-53).
C – Não crê em quem alega falar diretamente a partir de Deus, mas reduz Sua Palavra às Escrituras (Leviathan, XXXVI). Afirma que “Deus não nos fala mais através de Cristo e de seus profetas em voz aberta, mas pelas Sagradas Escrituras, as quais diferentes homens compreendem de modo diferente” (Do Cidadão, p. 360).

O Deus que realmente falou?
“É certo que Deus é o soberano de todos os soberanos, e portanto quando fala a qualquer súdito deve ser obedecido, seja o que for que qualquer potentado terreno ordene em sentido contrário. Mas o problema não é o da obediência a Deus, e sim o de quando e o que Deus disse...” (Leviathan, XXXIII)

Quem de fato era profeta de Deus?
Que houve muito mais falsos do que verdadeiros profetas verifica-se no fato de Ahab (1 Reis 12) ter consultado quatrocentos profetas, e todos eles serem falsos e impostores, com a única exceção de Miquéias”.
No Antigo Testamento os profetas deviam falar de acordo com Moisés e “predizer o que Deus ia fazer acontecer... E no Novo Testamento há apenas um único sinal, que é a pregação da doutrina que Jesus é o Cristo. Quem quer que negasse esse artigo era um falso profeta.”

Da busca das causas naturais a Deus
“A curiosidade, ou amor pelo conhecimento das causas, afasta o homem da contemplação do efeito para a busca da causa, e depois também da causa dessa causa, até que forçosamente deve chegar a esta idéia: que há uma causa da qual não há causa anterior, porque é eterna; que é aquilo a que os homens chamam Deus...

A natureza de Deus é abscôndita
De modo que é impossível proceder a qualquer investigação profunda das causas naturais, sem com isso nos inclinarmos para acreditar que existe um Deus eterno, embora não possamos ter em nosso espírito uma idéia dele que corresponda a sua natureza”. (Leviathan, XII)
“O reconhecimento de um único Deus eterno, infinito e onipotente pode ser derivado do desejo que os homens sentem de conhecer as causas dos corpos naturais, e suas diversas virtudes e operações, mais facilmente que do medo do que possa vir a acontecer-lhes nos tempos vindouros. Pois aquele que de qualquer efeito que vê ocorrer infira a causa próxima e imediata desse efeito...
..., e depois a causa dessa causa, e mergulhe profundamente na investigação das causas, deverá finalmente concluir que necessariamente existe (como até os filósofos pagãos confessavam) um primeiro motor. Isto é, uma primeira e eterna causa de todas as coisas, que é o que os homens significam com o nome de Deus”.

A Palavra de Deus se evidencia na Razão Natural “Não convém renunciar aos sentidos e à experiência, nem àquilo que é a palavra indubitável de Deus, nossa razão natural. Pois foram esses os talentos que ele pôs em nossas mãos para vivermos, até o retorno de nosso abençoado Salvador” (Leviathan, XXX). Deve-se obedecer ao Reino de Deus. Quanto ao Reino Civil, o homem o projeta à luz da razão, a primeira forma de Deus nos falar.

CÂNON, INTERPRETAÇÃO DAS ESCRITURAS E PAZ CIVIL
É a pessoa soberana quem define o que é canônico, isto é, o que diz respeito aos deveres civis e a pessoa soberana deve interpretar ou delegar a alguém a interpretação que seja de acordo com a consecução da paz civil. Uma doutrina, mesmo que seja verdadeira, se prejudicar a paz civil não deverá ser ensinada.

Quando se completou o Cânon do AT
“Todas as Escrituras do Antigo Testamento foram postas na forma que possuem após o regresso dos judeus do cativeiro em Babilônia, e antes do tempo de Ptolomeu Filadelfo, que as mandou traduzir para o grego por setenta homens, que lhe foram mandados da Judéia para esse fim... As Escrituras foram postas na forma que lhes conhecemos por Esdras”. (Leviathan, XXX).
Isso é ensinado no Pontifício Instituto Bíblico de Roma até hoje.

Os Livros considerados Apócrifos
“Os livros Apócrifos nos são recomendados pela Igreja, embora não como canônicos, como livros proveitosos para nossa instrução”. (Leviathan, XXXIII).
Nesse e noutros aspectos, Hobbes “prepara a tolerância na medida em que diz serem indiferentes à salvação, bem como ao Estado e à Igreja, a maior parte dos temas que levam os homens a disputar sobre a religião”. (Do Cidadão, Introd. de R. J. Ribeiro, p. XXXII, n.19).

A Religião do Estado e a Tolerância na Bíblia

Hobbes cita o caso do General sírio Naamã, convertido ao Deus de Israel, como exemplo de obediência civil e de fé em Deus ao mesmo tempo, numa forma de liberdade concedida pelo profeta Elisieu, o que podemos ver também em relação à tolerância religiosa. O General disse a Eliseu: “Nunca mais oferecerá este teu servo holocausto nem sacrifício a outros deuses, senão ao Senhor. Nisto perdoe o Senhor a teu servo; quando o meu senhor entra na casa de Rimom para ali adorar, e ele se encosta na minha mão, e eu também me tenha de encurvar na casa de Rimom, quando assim me prostrar na casa de Rimom, nisto perdoe o Senhor a teu servo. Eliseu lhe disse: Vai em paz”. (II Rs 5: 17-19) Hobbes cita essa passagem em relação à obediência ao poder civil em primeiro lugar, do qual vem a legitimidade sobre a religião, no Cap. XLII do Levitã, afirmando, em primeiro lugar, que Em primeiro lugar, que "a fé é uma dádiva de Deus, que o homem é incapaz de dar ou tirar por promessas de recompensa ou ameaças de tortura. Mas se além disso se perguntar: E se nos for ordenado por nosso príncipe legítimo que digamos com nossa boca que não acreditamos, devemos obedecer a essa ordem? A afirmação com a boca é apenas uma coisa externa, não mais do que qualquer outro gesto mediante o qual manifestamos nossa obediência; o que qualquer cristão, mantendo-se em seu coração firmemente fiel à fé de Cristo, tem a mesma liberdade de fazer que o profeta Eliseu concedeu a Naaman, o sírio".
Em segundo lugar, afirma que "tudo aquilo que um súdito, como era o caso de Naaman, é obrigado a fazer em obediência a seu soberano, desde que o não faça segundo seu próprio espírito, mas segundo as leis de seu país, não é uma ação propriamente sua, e sim de seu soberano; e neste caso não é ele quem nega Cristo perante os homens, mas seu governante e as leis de seu país".

QUEM PARTICIPA DO REINO DE DEUS?
“No reino de Deus, não consideramos como seus súditos os corpos inanimados ou irracionais, embora estejam subordinados ao poder divino; e não os contamos, porque eles não entendem o que sejam os mandamentos e ameaças de Deus; nem tampouco os ateus, porque não acreditam que Deus exista...
... nem mesmo os que, acreditando na existência de Deus, não crêem, contudo, que ele governe estas coisas inferiores; pois estes últimos, embora sejam governados pelo; poder de Deus, não reconhecem, porém nenhum de seus mandamentos, nem temem suas ameaças. Considera-se pertencente ao reino de Deus, portanto, apenas esses que confessam ser ele o regente de todas as coisas, e acreditam que ele tenha dado mandamentos aos homens, e fixado castigos para quem os descumprir. Os demais não devemos chamar súditos, mas inimigos, de Deus”.(Do Cidadão, Parte III: Religião, p. 240 )

ONDE ESTÁ O REINO DE DEUS?
“Deus na verdade reina lá onde suas leis são obedecidas não por medo aos homens, mas por medo a ele”. (De Cive, Cap. XVI).
Noutras palavras, como disse o Cristo: “Porque o reino de Deus está dentro de vós”. (Lc 17: 20-21)

CRISTO E O PODER CIVIL
“Nada foi feito ou ensinado por Cristo que tenda a diminuir o direito civil dos judeus ou de César”.
Dado que ele (Cristo) nada fez senão procurar provar que era o Messias, pela pregação e pelos milagres, ele nada fez contra a lei dos judeus... E também nada fez de contrário às leis de César”.



CONCLUSÃO
Na mesma Dedicatória do Leviathan, que nos inspirou para pesquisar relevância das Escrituras em seu pensamento, Hobbes diz:
“Sou um homem que ama suas próprias opiniões, que acredito em tudo o que digo”.
E como um escriba sábio, que busca em seu tesouro coisas novas e velhas, encontrou nas Escrituras bases para o consentimento, a soberania absoluta, a paz civil, a preservação da vida, que é o nosso maior bem, e o enfrentamento da Igreja, que distorceu as Escrituras, como ele diz:
O maior e principal abuso das Escrituras e em relação ao qual todos os outros são, ou conseqüentes ou subservientes, é distorcê-las a fim de provar que o reino de Deus, tantas vezes mencionado nas Escrituras, é a atual Igreja”. (Leviathan, XLIV).

Seu objetivo começa a ser alcançado mesmo em sua existência, pois ele diz, sobre o Leviathan:
“Ouço dizer que este livro se retira de circulação em Itália, por tratar-se de um livro que causa maior dano à sua religião que todos os escritos de Lutero e Calvino juntos. Veja... que contraste entre essa religião e a razão natural” (Tönnies, Hobbes, p. 40).

Hobbes faz, assim um “retorno às coisas mesmas” em relação ao Reino de Deus, visando a Paz Civil, lendo as Escrituras não maiss como “as fortificações avançadas do inimigo, de onde este ameaça o poder civil”.

Para ele, enfim:
“As Escrituras foram escritas para mostrar aos homens o reino de Deus, e preparar seus espíritos para se tornarem seus súditos obedientes; deixando o mundo, e a filosofia a ele referente, às disputas dos homens, pelo exercício de sua razão natural”. (Levithan, VIII)...

...Afinal, como disse Cristo:

O meu Reino não é deste Mundo” (Jo 18:36)

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ADENDO: HOBBES: UM ILUMINADO?
1 - Na edição de 1651do De Cive aparece a seguinte frase grega:

“Phrontides dasterai sophóterou”.

Ela pode ter um dos significados abaixo:

A – “Partilhadas reflexões do (mais) sábio (de todos)”.
B -"Reflexões iluminadas do mais sábio".

phrontides (pl.): pensamentos, reflexões, meditações.
dasterai (adj. pl.): repartidas, divididas, distribuídas; pode, também, significar "iluminadas"
sophóterou: “do mais sábio”. O termo está no comparativo absoluto.
(Tradução do Grego feita por Paulo Sérgio de Proença, a quem sou muito grato).

2 – Em uma Carta à M. Sorbière d'Orléans, de 25 de abril de 1646, Mersenne afirma, sobre o De Cive:
"Este livro vale um tesouro e seria desejável que os caracteres usados para sua impressão fossem de prata".

3 - E Hobbes afirma sobre sua própria obra:
"Se a física é uma coisa toda nova, a filosofia política o é mais ainda. Ela não é mais antiga que minha obra o De Cive". (Epístola Dedicatória do De Corpore).
(Tradução do Francês: Antonio Juan Dias, a quem também expresso minha gratidão).