sábado, 19 de dezembro de 2009

Thomas Hobbes: a soberania absoluta como causa da liberdade civil

Escrevi este breve texto em 2005, quando tive a bênção de ser aluno especial dos Profs. Drs. Maria Tereza Sadek e Gildo Marçal Brandão, no Departamento de Ciência Política da USP, pelos quais tenho imensa gratidão.

Hobbes parte da análise da natureza humana para deduzir a necessidade não só da organização civil de seu contexto político, mas suas teses têm um caráter universal, dizem respeito ao fenômeno político em si, à segurança da sociedade em geral. Em toda a Segunda Parte do Leviatã pode-se observar a importância que ele dá a uma tese, a de que o Estado é dado para assegurar a paz civil, à qual retorna no decorrer de sua exposição, tanto para refutar objeções quanto para, independente delas, solidificar sua construção. Podem-se destacar algumas de suas teses em que o caráter absoluto da soberania é corroborado. Partindo da idéia de personificação, isto é, do acordo e da transferência do poder a uma pessoa soberana, Hobbes deduz o caráter absoluto desse poder. De acordo com Anne-Lise Dehier:

“... A partir de cette définition de la personnalité du souverain, et selon le principe de contradiction, Hobbes peut soutenir rationnellement et dans le détail sa théorie du pouvoir absolu ; le comportement du citoyen, ses actes, ses paroles et ses intentions sont appréhendés et évalués, avant toute autre considération, en fonction de cette définition et de ce principe, quel que soit le domaine de la vie sociale”.[1]

No Cap. XVII observa-se que a tese acima citada, a qual será, sob argumentos aduzidos de bases diversas, repetida ao longo da segunda parte, isto é, a defesa do caráter absoluto da soberania em prol da preservação da paz civil. No sistema dedutivo de Hobbes, as leis de natureza são contrárias às paixões naturais e o pacto pelo qual se aliena o poder a uma pessoa soberana implica no caráter absoluto do poder dessa pessoa, seja ela uma monarquia ou uma república. O objetivo dos homens, ao consentirem em viver sob as restrições do governo civil, é a superação do estado de guerra, pois as leis de natureza não são cumpridas se não houver a “espada”, ou seja, a instituição do poder soberano. A simples união dos indivíduos se diluirá se não houver um poder comum, o qual, sem a obediência dos súditos a uma soberania inalienável e indivisível, chegará à morte.[2]
O caráter absoluto da soberania é exposto por Hobbes com diversos argumentos, dos quais destacamos alguns que julgamos suficientes para demonstrar sua essência.[3] Por exemplo, no caso do soberano levar à morte um súdito inocente, como o fez Davi com Urias, Hobbes afirma que mesmo considerando que “o direito de lhe fazer o que lhe aprouvesse lhe foi dado pelo próprio Urias” ([4]), seu súdito, Davi pecou contra a lei de Deus, isto é, contra as leis de natureza ou contra a eqüidade. Seu ato “não foi uma injúria feita a Urias, e sim a Deus”.[5]
Esse argumento pode ser interpretado das seguintes formas: por um lado, Hobbes estaria argumentando em favor da precedência das leis de natureza sobre os direitos do soberano; por outro, é uma lei de natureza que os contratos sejam cumpridos, portanto, o soberano poderia agir de qualquer forma em relação ao súdito e não ser acusado de injustiça ou de injúria; ainda por outro lado, como é o soberano quem dá força, pela espada, às leis de natureza, elas não teriam valor algum se não fosse ele, o que vale dizer que as leis de Deus, isto é, de natureza, são colocadas em segundo plano, pois é o próprio soberano quem decide que tipo de opiniões e crenças religiosas devem ser ensinadas em seus domínios. Isto é, Hobbes procura, por todos os meios, manter a soberania, a qual, em última instância, é o que garante a segurança e a paz dos súditos. Nas palavras de Hobbes: “Se a autoridade é concedida com certos limites, quem a recebe não é rei, mas súdito de quem a outorga”.[6]
Bobbio estabelece uma comparação do conceito de soberania de Hobbes com o de Jean Bodin, demonstrando a insuficiência deste em relação à verdadeira soberania. Para Bodin, o poder está sujeito às leis naturais, às leis divinas e aos direitos privados.[7] Para Hobbes, porém, tais limites não se sustentam, pois as leis naturais e divinas, nas palavras de Bobbio, “não são aplicadas com a força de um poder comum; por isso não são externamente obrigatórias, mas só interiormente – isto é, no nível da consciência”.[8] Quanto aos direitos privados, eles só existem devido à alienação do poder à pessoa soberana, que os garante, pois antes não havia propriedade, mas o conflito permanente. “A esfera privada”, continua Bobbio, “coincide com o estado de natureza e se dissolve inteiramente na esfera pública, isto é, nas relações de domínio que ligam o soberano ao súdito”. [9] O próprio termo “soberano” significa sem limites, sejam estes divinos, naturais ou civis, o que significa que, na prática, ele poderá até matar um inocente, como no caso de Davi e Urias. E, a rigor, se Davi cometeu uma injúria contra Deus, o representante de Deus recebe sua autoridade do próprio soberano, sendo-lhe submisso. Foi o que ocorreu com Salomão, que, seguiu a Astarote, deusa dos sidônios (I Rs 11, 5) e, a rigor, segundo o que se prescreve em Dt 4,19 e 17,3, deveria ter sido apedrejado. Sua posição soberana, porém, impediu punição tão severa. Quem se atreveria a decidir pela morte do soberano? Nos termos de Hobbes, era ele próprio quem reconhecia e legitimava a religião, e esta não poderia se voltar contra quem a legitimara.
A despeito do caráter ilimitado desse poder, Hobbes demonstra, porém, que, em lugar de ser uma ameaça à liberdade, como o faziam crer seus opositores, ele é a garantia da liberdade dos súditos. Os Estados antigos, como Atenas e Roma, asseguravam a liberdade por serem fortes. Nesse sentido, Hobbes censura os livros que, atribuindo à monarquia a pecha de tirania e de regime da escravidão, e que consideravam a democracia o símbolo da liberdade, incentivavam a sedição. Tais livros omitiam que o que existe é soberania, em qualquer forma de governo, e que sem ela os súditos não têm garantias de viver em paz. Num Estado como Roma, em que o poder se dividia entre o Senado e o Povo, César, um grande estrategista e um líder carismático, pode aproveitar a situação e lançar as bases do Império, acabando com a República e, conseqüentemente, com a liberdade dos súditos. Dessa forma, a própria República errou ao dividir o poder, pois a soberania em si é indivisível, como reconhece Rousseau: “A soberania é indivisível pela mesma razão que é inalienável”. E acrescenta que os políticos tomaram “por partes dessa autoridade o que não passa de emanações suas”.[10] E assim erram, de acordo com Hobbes, os que acham que o poder das democracias não é ou não deve ser absoluto, como omitem que, na realidade, seus defensores podem estar interessados mais pelo poder do que pelo simples fim da monarquia. Todo poder, assim, é monárquico, isto é, uno indivisível. Como afirma Hobbes: “Ora, o poder é sempre o mesmo, sob todas as formas, se estas forem suficientemente perfeitas para proteger os súditos”.[11]
Por fim, nessas breves considerações, acrescento que, ao falar dos atributos de Deus, afirmando que não se deve dizer “que há mais do que um Deus, porque isso implica que todos são finitos, pois não pode haver mais do que um infinito” ([12]), ele está metaforicamente afirmando que o Estado, como Deus mortal criado artificialmente, deve ter unidade e soberania como Deus, mas não deve arriscar-se a dividir o poder, pois isso só é possível na economia divina, como ele antecipou ao dizer: “no reino de Deus pode haver três pessoas independentes sem quebra da unidade no Deus que reina, mas quando são os homens que reinam... isso não pode acontecer. Se o rei representa a pessoa do povo e a assembléia geral também representa a pessoa do povo, e uma outra assembléia representa a pessoa de uma parte do povo, não há apenas uma pessoa, nem um soberano, mas três pessoas e três soberanos”.[13]
Nesse sentido, o Deus mortal que ele enuncia no cap. XVII pode ser comparável, por inferência, ao que ele fala sobre a vontade de Deus, quando diz: “… Quando atribuímos uma vontade a Deus, ela não deve ser entendida, como a do homem, como um apetite racional, mas como o poder pelo qual tudo faz”. [14] Aqui residiria um possível sentido para o subtítulo de sua obra, que se inicia de forma aristotélica, ao dizer “matéria, forma”, mas conclui de forma realista, ao acrescentar “e poder de um Estado Eclesiástico e Civil”. Na realidade, um Estado que parte do homem, sua matéria e seu artífice, homem que lhe dá, portanto, forma, nada seria se não tivesse poder, isto é, se não fosse soberano.
E assim como no De Cive, também no Leviatã os atributos de Deus segundo a razão natural são negativos, o que demonstra, na realidade, a submissão da idéia de Deus às convenções dos homens e à idéia de Estado, conforme se pode inferir da afirmação: “Aquele que quiser atribuir a Deus apenas o que é garantido pela razão natural, ou deve servir-se de atributos negativos...” [15]. E dessa forma Hobbes passa, dedutivamente, de um homem artificial a um Deus artificial, deduzido do próprio homem artificial, como ele afirma: “E porque um Estado não tem vontade e não faz outras leis senão aquelas que são feitas pela vontade daquele ou daqueles que têm o poder soberano poder, segue-se que aqueles atributos que o soberano ordena, no culto de Deus, como sinais de honra, devem ser aceites e usados como tais pelos particulares em seu culto público”.[16] Hobbes estava defendendo a soberania, portanto, não só diante dos democratas, mas também do pontifex maximus, que presumia ser o representante de Deus e, por inferência, superior ao Estado.
Hobbes espera que, com “a ciência da justiça natural”, os príncipes possam bem governar e os súditos, pelo seu estudo, aprendam a obedecer. Ele tinha uma utopia, para a qual, no entanto, era indispensável a força do Estado.



[1] Anne-Lise Dehier, Justice, Absolutisme et Individualism chez Hobbes. Partie I: La Souveranité. Mémoire de maitrise réalisé sous la direction de Monsieur Michel Malherbe. Université de Nantes, 1997-1998.
[2] Essas teses são demonstradas nos caps. XVII e XXIX.
[3] Sem pretender que o termo “essência” seja metafísico.
[4] Leviatã, Cap. XXI, p. 135 (Os pensadores)
[5] Idem.
[6] De Cive, VII, 7, apud Bobbio, A Teoria das Formas de Governo, 4a. ed., p. 107. E Bobbio afirma, de forma tautológica, mas necessária: “O poder soberano é absoluto. Se não fosse absoluto, não seria soberano: soberania e caráter absoluto são unum et idem”.
[7] Id. p. 107.
[8] Idem
[9] Idem, p. 108
[10] Do Contrato Social, Livro II, Cap. II, p. 44s (Os Pensadores, 1978).
[11] Cap. XVIII, p. 116, o que também é visto em Rousseau, op. e loc. cit.
[12] Cap. XXXI, p. 219.
[13] Cap. XXXIX, p. 201.
[14] Idem, ibidem
[15] Idem, p. 221.
[16] Idem, ibidem.

sábado, 28 de novembro de 2009

“O meu reino não é deste mundo” ou: Homens, súditos e cristãos em Hobbes

Ao Prof. Ênio José da Costa Brito, uma fonte de saber e amizade.

No Prefácio da obra Do Cidadão encontra-se o plano de trabalho de Hobbes, tanto do ponto de vista teórico quanto em relação à moral. Eis a sua divisa:

“Neste livro, verás sucintamente descritos os deveres dos homens, primeiro enquanto homens, depois enquanto súditos, e finalmente na qualidade de cristãos” (p. 11).

Por essa síntese verifica-se que ele parte dos direitos de natureza, os quais devem ser preservados pelo Estado. Enquanto criaturas de Deus, no entanto, conforme as Escrituras, o seu fim é a vida eterna. A doutrina cristã deve ser reconhecida pelo Estado, mas se este ordenar algo contrário à salvação, poderá ser desobedecido sem injustiça.

Em sua dialética, ao mesmo tempo em que a afirma a existência de um deus mortal, deduzido da razão natural e construído artificialmente pelo homem, Hobbes submete as idéias a respeito do Deus imortal a esse grande homem. Na realidade, como o Estado é deduzido por natureza, Hobbes, reduzindo a religião ao não demonstrável, submete-a à autoridade civil, a qual, em lugar de ser mortal, assume um caráter sagrado. Assim, o que é sagrado é o próprio Estado.

Para Hobbes a fé é uma questão particular e o Estado não tem um credo específico. Não é porque um rei se converte que todo o Estado será cristão.

Nesse aspecto, Leo Strauss afirma que Hobbes parte das Escrituras para justificar a autoridade civil, mas ao fim as nega. O próprio Hobbes reduz a religião a uma instituição que para ser reconhecida juridicamente, está submissa ao Estado, o que aparece, tanto no De Cive quanto no Leviathan, em sua definição da palavra “Igreja”. Esta só terá legitimidade enquanto pessoa se for reconhecida pelo Estado e o homem não lhe estará sujeito a não ser como fiel, não enquanto cidadão.

Patricia Springborg está de acordo com Strauss. No texto Hobbes on Religion ela afirma que suas obras Historia Eclesiastica (publicada em 1688) e An Historical Narration Concerning Heresy and the Punishment Thereof (publicada em 1680) têm sido ignoradas no estudo do pensamento religioso do filósofo. Em relação à heresia, afirma que Hobbes se refere a uma definição da mesma na Grécia Antiga, o que faz para proteger-se de ser acusado como tal e que, quando Hobbes afirma que a autoridade da Escrituras procede da pessoa soberana, anula essa autoridade.

No decorrer da História observa-se que, enquanto na Igreja Primitiva se fazia um grande esforço diante da religião oficial judaica e do Estado, ambos perseguidores da Igreja nascente, na Idade Moderna, devido ao domínio da Igreja sobre a cultura e a política, houve uma longa luta da filosofia e da ciência diante da instituição eclesiástica, que era tão secular quanto outras, mas com o trunfo de ser representante de Deus na terra, sobrepondo-se, em nome dessa ideologia, ao estado, à filosofia, à ciência e à liberdade moral. A Igreja, que no início não tinha expressão política, com o passar dos séculos tornou-se controladora das consciências. Chegou-se à situação dialética em que o Estado, de seu perseguidor, precisava libertar-se dela.

Hobbes teve um importante papel na elaboração de uma teoria que demonstrasse que sem o Estado não é possível existir a própria sociedade civil. Logo, a legitimação da religião também provém do próprio soberano. Não ao contrário, conforme já vimos ao citar o cap. XII, sobre as vantagens do poder eclesiástico ao “reconhecer” um soberano. Mas Hobbes não está tratando, em sua obra, primeiramente, da religião cristã, mas da soberania e, por conseqüência, da religião enquanto instituição que pretendia ser um Estado dentro do Estado, o que seria uma contradição lógica e ontológica.

É impressionante a tarefa de Hobbes, diante de uma cultura influenciada pela leitura da Bíblia: demonstrar que a paz é alcançada através da filosofia civil ou moral, não da instituição eclesiástica, que se dizia a guardiã das Sagradas Escrituras, justamente destas, que afirmam, na interpretação que Cristo é o Príncipe da Paz, e que seu Reino não é deste mundo.

Hobbes já questiona a própria noção de cânon, afirmando que os livros considerados canônicos eram aqueles que a Igreja Anglicana, isto é, a Igreja submissa ao Estado, assim o decidisse. Acima do Papa estava o Soberano, portanto. Nada mais lógico, pois a instituição que garante a paz civil é o Estado, o que seria uma redundância, pois ele resgata o sentido de Civitas (Estado) tanto no De Cive quanto no Leviathan, mas era necessário afirmar isso em seu contexto.

Hobbes afirma que a discórdia em seu contexto era provocada pela falta de ciência dos teólogos, sendo a finalidade da filosofia moral o alcance da paz civil. Ele estabelece um contraste entre o mundo da discórdia das doutrinas da teologia e o mundo da paz da geometria, isto é, o modelo da filosofia civil e, por conseqüência, da paz, não era a disputa teológica, mas a filosofia moral, que levaria à conclusão de que sem a obediência a um poder comum, que colocasse a todos os homens em respeito, estes não tirariam prazer algum do convívio social, pois continuariam no estado de natureza, como afirma o filósofo no célebre cap. XIII do Leviathan.
Então, por que chamar a esse Estado de “eclesiástico”?

Aparentemente é um Estado laico absoluto. Porém A. P. Martinich discorda disso, afirmando que em Hobbes há uma tentativa de conciliação entre a visão da ciência moderna e a visão cristã predominante sobre Estado. Este, de acordo com Hobbes, subsume em si todas as instituições, principalmente a instituição eclesiástica, chegando mesmo a decidir sobre que é canônico ou não, bem como sobre as doutrinas a serem ensinadas, visando a paz, e assim, nada que se opõe à paz civil deve ser ensinado. Ainda que as doutrinas sejam verdadeiras, nada impedirá que sejam controladas, tendo em vista a paz.

Hobbes possivelmente chame a esse estado de “eclesiástico” retoricamente, isto é, como estratégia discursiva, pois em seu tempo as mentalidades ainda eram marcadas pela visão religiosa cristã do mundo. Porém, com o passar dos anos, essa visão de mundo seria secularizada na mentalidade européia, e os empiristas ingleses estão na base de uma visão laica do mundo que posteriormente serviu de base ao iluminismo francês, a seu agnosticismo e anticlericalismo.

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Considerações Sobre o Estado, a Religião e o cidadão cristão no pensamento de Rousseau

A Rosa Ferreira de Carvalho (1923-2009), cristã
e cidadã virtuosa, minha querida mãe.

Ao mesmo tempo em que dá preferência a uma religião Civil ou Nacional em oposição ao Catolicismo, Rousseau a critica porque ela será manipulada a serviço do Estado e, baseando-se “no erro e mentiras, engana os homens, e os faz crédulos e supersticiosos", levando o povo a ser "sedento de sangue e intolerante". (Do Contrato Social, Livro IV, Cap. VIII, “Da Religião Civil”, Os Pensadores, 2. ed., 1978, p. 141).

De acordo com Luiz Roberto Salinas Fortes:

“Rousseau reforça o contrato social através de sanções rigorosas que acreditava serem necessárias para a manutenção da estabilidade política do Estado por ele preconizado. Propõe a introdução de uma espécie de religião civil, ou profissão de fé cívica, a ser obedecida pelos cidadãos que depois de aceitarem-na, deveriam segui-la sob pena de morte”. (Jean- Jacques Rousseau. In: www.culturabrasil.pro.br/rousseau).

E acrescenta, numa avaliação das influências do pensamento político de Rousseau:

“O mais notável nessa república projetada era o disposto para banir estranhos à religião do estado e punir os dissidentes com a morte”. (Idem)

Apesar de reconhecer que “o exemplo de religião do homem não hierarquizada é o cristianismo do evangelho... centrada na moral e na adoração a Deus”, Rousseau “a considera ruim para o Estado”. (Idem). O Catolicismo é interpretado com sérias críticas, pois é uma religião hierarquizada e “não é incentivadora do patriotismo, mas compete com o Estado pela lealdade dos cidadãos”, e para ele esse tipo de religião destruiria a unidade social. (Idem). Pregando que o Reino de Deus não é deste mundo, o Catolicismo “tira do cidadão o amor pela vida na terra. Como conseqüência os cristãos estão muito desligados do mundo real para lutar contra a tirania doméstica. Além disso, os cristãos fazem maus soldados, novamente porque eles não são deste mundo. Eles não irão lutar com a paixão e patriotismo que um exército mortífero requer”. (Idem).

Para Rousseau, atendendo ao princípio da unidade política e social, “o Estado deveria usar a lei para banir qualquer... socialmente prejudicial” e as religiões deveriam ensinar, além dos princípios comuns ao Cristianismo, “a sacralidade do contrato social e da lei". (Idem).

Salinas observa ainda que “o fato de que o Estado possa banir a religião considerada anti-social deriva do princípio de supremacia da vontade geral (que existe antes da fundação do Estado) à vontade da maioria (que se manifesta depois de constituído o Estado), ou seja, se todos querem o bem estar social, e se uma maioria deseja uma religião que vai contra essa primeira vontade, essa maioria terá que ser reprimida pelo governo”. (Idem).

Sobre a afirmação de Rousseau de que “Jesus... fez que o Estado deixasse de ser uno e determinou as divisões intestinas que jamais deixaram de agitar os povos cristãos” e de que “os humildes cristãos mudaram de linguagem e logo se viu esse pretenso reino do outro mundo tornar-se neste, sob um chefe visível, o mais violento despotismo”, no entanto, elas nos parecem contraditórias, pois os verdadeiros cristãos procuravam cultuar a Deus sem uma pretensão totalitária. (Do Contrato Social, op. cit., p. 139).

Foram oportunistas quem se apropriaram da fé cristã e a utilizaram como um instrumento de alienação e domínio. E deve-se observar que, apesar de viverem sob perseguição, os cristãos eram bons cidadãos, e Rousseau certamente preferiu como exemplo de virtude política o Estado Romano, não por sua perseguição a inocentes e pelos espetáculos horrendos do Coliseu, nos quais até mulheres gestantes eram mortas por feras, mas sim por sua tese da unidade social, que até pode soar como uma unidade totalitária, conforme aparece no seu texto: “Tudo o que rompe a unidade social, nada vale”. (Idem, p. 141).

Porém, ele não valoriza o fato de esses cidadãos terem dado a própria vida por amor de sua consciência e terem colocado a sua liberdade de culto acima do próprio Imperador. E também não valoriza o fato de que os contribuíram para o desenvolvimento do princípio da subjetividade na cultura ocidental, considerando justa a desobediência ao Estado e o potencial ideológico dos simples fiéis era tão forte que Roma, amedrontada, decidiu persegui-los. Porém, apesar de perseguidos, eles podem ser comparados aos hebreus do Antigo Egito: “... Quanto mais os afligiam, tanto mais se multiplicavam e tanto mais se espalhavam...”. (Êxodo 1,12).
Os cristãos, de cuja obediência civil e virtude militar Rousseau duvida, poderiam ser vistos de forma mais positiva, pois eram capazes de fazer frente à Razão de Estado. Eles serviam primeiro à sua consciência. É digno de nota que Kant faz uma paráfrase do Evangelho para argumentar em prol da supremacia da Ética sobre a Razão de Estado, quando diz, na Paz Perpétua:

“A política diz: ´sede astutos como as serpentes´; a moral acrescenta (como condição limitante): ´e sem maldade como as pombas´”. (A paz perpétua e outros opúsculos, Lisboa: Edições 70, 1995, p. 130)

Essa paráfrase que Kant faz do Evangelho coloca a ética cristã acima do Estado. Nela a boa vontade está acima da astúcia e a moral é para ele uma condição limitante da Razão de Estado. Nele está presente um idealismo que pode ser visto de forma ainda mais clara na tese a seguir:

“As máximas políticas não devem originar-se do bem-estar ou da felicidade de cada Estado, esperadas como conseqüência delas, e por conseguinte não derivam da finalidade que cada um deles estabelece como objeto (do querer), enquanto supremo (mas empírico) princípio da sabedoria política, e sim provir do conceito puro do dever do direito (da obrigação moral, cujo princípio ´a priori´ é dado pela razão pura), quaisquer que venham a ser as conseqüências físicas”. (Idem, p. 148s)

Os cristãos sofreram no próprio corpo as conseqüências de sua autonomia moral e faltou a Rousseau, em seu texto inflamado, observar isso, a ele que, no Emílio, é um cultor da voz interior.

A doutrina do Estado de Rousseau, pois, é totalmente leiga, isto é, não adota princípios teológicos para justificar a soberania do Estado. Como Hobbes, para ele a esfera civil deve ser independente e superior à religiosa. Porém, acrescenta a tese de o cristão, por sua veneração prioritária ao Reino de Deus e às doutrinas da Igreja, ser um mau cidadão, bem como a de que as religiões intolerantes não deveriam ser toleradas.

O caráter laico e religioso de seu Estado se tornaria ainda mais evidente quando os revolucionários franceses, mesmo com seu anticlericalismo, construíram um Panteão (palavra na qual está presente o termo “theós”) ao qual levaram seus restos mortais, assim, um deísta foi venerado num período de renovação do culto do Estado, em pleno séc. XVIII, o “século das luzes”.

Isso demonstra que, conforme ele mesmo admite, se a religião esteve na base das primeiras formas de organização social, agora, mesmo com o esvaziamento dos argumentos teológicos, se demonstra que nenhuma sociedade sobrevive sem a religião, mesmo que ela seja laica, e que um novo sacerdócio poderia estar a caminho, o do Estado total.

Mais tarde, Comte iria cair na mesma contradição, pois negava o Catolicismo, porém o esvaziou de suas datas sagradas e da veneração de santos, colocando em seu lugar um novo calendário, novos heróis e novos rituais, como os republicanos franceses, que organizaram um novo calendário e o citado panteão cívico.
Dessa forma, a crítica de Rousseau a Hobbes, presente na afirmação: “engano-me ao aludir a uma república cristã, pois cada um desses dois termos exclui o outro” veio a ser negada pela prática, pois se não admitia uma república cristã, presumia uma república de caráter inquisitorial, pois ele próprio escreveu adiante: “Quem quer que diga: Fora da Igreja não há salvação – deve ser excluído do Estado, a menos que o Estado seja a Igreja, e o príncipe, o pontífice”. (Do Contrato Social, p. 143, 145).

Porém verifica-se que, tendo negado a fé cristã em relação à virtude cívica, Rousseau não negou, necessariamente, a Religião, pois valorizou os sentimentos religiosos, transferindo-os para o Estado, defendendo uma religião cívica. Em relação a essa última expressão, na verdade, se Rousseau considera a definição “república cristã” como contraditória, devemos reconhecer que ele também usa termos inconciliáveis, pois mesmo para Hobbes o Estado é laico por natureza, mas o pensador inglês teria a virtude a de não cultuar o Estado, mas sim colocar a obediência a Deus em primeiro lugar, citando Pedro, que disse: “Antes importa obedecer a Deus do que aos homens” (Cf. De Cive e Atos do Apóstolos).

E apesar de suas críticas ácidas ao Cristianismo nos moldes católicos, Salinas observa, em relação a Rousseau, que “nas Lettres ecrites de la Montagne... com referência à constituição de Genebra ele advogava a liberdade de religião contra a Igreja e a polícia” e que na Profession de foi du vicaire savoyard “... mostra uma natural e verdadeira susceptibilidade para a religião e para Deus, cuja onipotência e grandeza são, para ele, publicamente renovadas cada dia”. (Op. cit.).

Porém, o modelo de Estado para Rousseau, em relação à religião, era o Império Romano, que além de excluir a maioria da população dos direitos de cidadania, tanto fez culto de si mesmo quanto perseguiu duramente os cristãos, que cultuavam a Deus.

sábado, 31 de outubro de 2009

Tópicos sobre a Primeira Parte do Leviatã: Do Homem

Prof. Drndo. Isaar Soares de Carvalho – Escrito originalmente em 2005, como aluno especial do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da USP, e revisado em 2009.
Hoje dedico este texto ao meu filho Thomas, presente de Deus, e minha alegria!

Na Introdução do Leviatã Hobbes afirma que o homem pode imitar a natureza e, através da arte, criar um homem artificial, o corpo político. Este, como o homem, é um organismo: pode ter força e saúde e como todo corpo, pode ficar doente e perecer.

Feito à imagem e semelhança de Deus, agora o homem cria. Ele diz: “Fiat” e dá origem, através das paixões e da razão, ao Estado, homem artificial que foi projetado para a defesa e a proteção dos cidadãos: “salus populi é seu objetivo”.

Na primeira parte da obra, partindo do princípio de que quem for exercer o governo sobre uma nação “deve ler, em si mesmo, não este ou aquele indivíduo em particular, mas o gênero humano”, ele examina a matéria e o artífice do homem artificial, isto é, o próprio homem, propondo um novo “conhece-te a ti mesmo”, rejeitando o conhecimento baseado em livros, no costume dos homens de conhecerem os outros sem se conhecerem a si mesmos.

Devido ao papel da teoria do conhecimento para a explicação da origem do Estado, afirma que as interpretações das sensações ou da percepção sensível, tais como aparecem em Aristóteles e nas universidades de sua própria época, são com freqüência um “discurso destituído de significado” (Leviatã, Os Pensadores, 1974, Cap. I, p. 14).

É um pressuposto de sua teoria do Estado e da ação política, portanto, a natureza do homem. Para bem governar, é necessário bem conhecer a natureza das coisas em relação ao homem: “... os caracteres do coração humano, emaranhados e confusos como são, devido à dissimulação, à mentira, ao fingimento e às doutrinas errôneas, só se tornam legíveis para quem investiga os corações” (Leviatã, Introdução, p. 10).

Nesse aspecto Hobbes fazia referência à natureza das coisas, antecipando pesquisas da Psicologia. A Ciência Moderna descobriu que o coração é o centro da circulação sangüínea, e por isso é considerado como a base da vida física: a ele é associado não só o vigor físico, mas também o sentido da vida moral. No século XX Erich Fromm publicou O Coração do Homem, demonstrando teses antecipadas e intuídas por Hobbes sobre a maldade do homem interior. Mas é possível que Hobbes fale do coração em relação ao pensamento judaico, para o qual este é a faculdade e a sede da sensibilidade, da vontade, das paixões, afeições, dos desejos, apetites, da inteligência, dos propósitos e do caráter, significando o próprio interior do homem ou sua alma.

Sendo o Estado hobbesiano comparável a um grande homem, no qual se espelham a natureza e a razão de uma pessoa pequena, a explicação de sua gênese deve, pois, começar por uma antropologia, e enquanto na Filosofia Clássica o método era adequado ao objeto, na Filosofia Moderna o método o precede objeto. “Aquilo que vale como objeto é constituído pelo método” [Cf. Wolfgang Kerstin, “Thomas Hobbes – Filosofia Científica da paz e Fundação Contratual do Estado”, in: Filósofos do Séc. XVII. Uma Introdução. Lothar Kreimendahl,Org.].

Hobbes refuta duas autoridades tradicionais, a de Aristóteles e a da Igreja, que definiam o homem e a ação em termos metafísicos e teleológicos. A vida cívica não é tão natural como assegurava a tradição aristotélica, o que é afirmado por Hobbes tanto De Cive quanto no Leviatã. Ele demonstra, ao contrário de Aristóteles, que “a natureza separa os homens mais que os une” (Pierre Manent, Dicionário das Obras Políticas: “Leviatã”, p. 494).

E ao expor a oitava lei de natureza, critica o naturalismo ideológico de Aristóteles sobre a questão de decidir quem é o melhor homem nestes termos: “... Aristóteles afirma que por natureza alguns homens têm mais capacidade para mandar, querendo com isso referir-se aos mais sábios (entre os quais se incluía a si próprio, devido à sua filosofia), e outros têm mais capacidade para servir (referindo-se com isto aos que tinham corpos fortes, mas não eram filósofos como ele); como se senhor e servo não tivessem sido criados pelo consentimento dos homens, mas pela inteligência, o que não só é contrário à razão, mas é também contrário à experiência” (Leviatã, Cap. XV, p. 95).

A cooperação entre os membros da sociedade deve-se apenas às vantagens gozadas por eles individualmente. A sociedade é formada por pessoas condicionadas por motivos egoísticos e só se transforma em comunidade devido à existência de um poder soberano. Hobbes reconhece a necessidade da criação do Estado tanto para limitar esse egoísmo quanto para permitir a liberdade dos homens e a paz social, pois para ele a falta de paz interna em seu contexto era conseqüência de não saberem os homens a quem obedecer em sã consciência.

As desordens da Inglaterra decorriam primeiramente disso. A obediência á condição e motor da vida social. O conflito entre o poder civil e o religioso – a divergência de opiniões – indica que o homem não é animal político ou social por natureza. Ele não é naturalmente cidadão. A divergência de opiniões é capaz de dividir o corpo político. Porém, a guerra civil não é o único motivo para se defender a existência de um poder soberano, pois em tempos de paz se observa o temor, a desconfiança e a agressividade e “a vida do homem em sociedade é dominada pelo amor próprio, pela vanglória, pelo desejo de levar vantagem sobre o vizinho e de fazer reconhecer sua superioridade” (Pierre Manent, op. cit.,p. 494-495 e cf.Leviatã, cap. XIII).

O poder soberano reconhecido será capaz de conter a destruição e a guerra de todos contra todos, nascida do amor próprio e da ausência de um poder comum que pusesse a todos em respeito. Para Hobbes, “ideais como contrato, representação e responsabilidade não tinham sentido, a menos que apoiados por um poder soberano” (George Sabine, História das Idéias Políticas, Vol. II, p. 518).

No Cap. XIII do Leviatã Hobbes interpreta a natureza humana como fadada à autodestruição caso não haja um poder capaz de colocar a todos em respeito, concluindo pela necessidade do Estado como uma solução da razão diante dos apelos das paixões por uma vida segura, a qual é impossível no estado de natureza. A própria natureza egoísta dos homens os leva a fazerem um pacto pelo qual alienam o poder a uma pessoa soberana que os represente, a qual tanto pode ser um indivíduo quanto uma assembléia. Em relação aos Caps. XIII e XVI, que trata do estado de natureza e do pacto que cria a pessoa artificial, a qual é uma personificação, isto é, uma representação, Kerstin afirma que “em relação ao mundo das coisas a razão é racionalidade técnica e em relação ao mundo dos homens é racionalidade estratégica” (Wolfgang Kerstin, op. cit., p. 71).

Os sujeitos da ação se vêem como parceiros, mas também “se encaram um ao outro exclusivamente no horizonte dos seus próprios interesses; o outro é útil ou prejudicial para os planos pessoais; o interesse fundamental de cada pessoa visa o aumento de poder; o homem hobbesiano, como ser racional, é necessariamente um ser de poder, porque a razão se mostra precisamente na capacidade de pôr à sua disposição meios utilitários...” (Idem, p 73-74).

No Cap. XVI Hobbes desenvolve a tese do Estado como pessoa fictícia ou artificial, numa conclusão da Primeira Parte, relacionada com o que dissera na Introdução sobre a arte e o artificial. O “autor” é quem delega ou comissiona, o representante age por autoridade.

O caráter soberano do Estado hobbesiano pode ser verificado na afirmação de que “quando o ator faz um pacto por autoridade, obriga através disso o autor”, isto é, a multidão, o que é confirmado em sua afirmação de que o representante comum, quando tem autoridade sem limites, recebe-a de cada membro da multidão, os quais passam a ser os autores de todos os seus atos, o que será reafirmado no Cap. XVII, onde ele deixará claro que se estabelece uma relação entre a pessoa soberana (representante ou ator) e os súditos (autores).

Hobbes evoca a lei de natureza segundo a qual os contratos devem ser cumpridos, alertando sobre o cuidado que se deve tomar ao fazer um contrato em relação à autoridade do ator ou do autor, pois os pactos deverão ser cumpridos, mesmo que violem a lei de natureza. O mais importante, porém, em relação à multidão e à pessoa soberana, é sua afirmação de que “ninguém é obrigado por um pacto do qual não é autor” (Leviatã, Cap. XVI,, p. 101. Como contratualista, ele postula a tese de que a multidão deve fazer uma transferência total do poder de governo, isto é, um “pactum subiectionis”.

Ao mesmo tempo em que fala da personificação do Estado, argumenta em favor de sua necessidade, pois sem ele não poderia haver outras personificações: os atores, isto é, representantes de outrem, seja de uma instituição, de Deus ou de outro homem, só recebem sua legitimação devido à pessoa soberana que foi instituída. Antes dela não havia povo, mas multidão, não havia direito à propriedade, mas uma guerra de todos contra todos, nem havia representação reconhecida de Deus, pois é o Estado quem legitima a própria religião. Torna-se claro que, quantos aos direitos privados, eles só existem devido à alienação do poder à pessoa soberana, que os garante, pois antes não havia propriedade, mas o conflito permanente. Bobbio afirma, em relação ao cap. XIV do Leviatã, que “a esfera privada coincide com o estado de natureza e se dissolve inteiramente na esfera pública, isto é, nas relações de domínio que ligam o soberano ao súdito” (Norberto Bobbio, A Teoria das Formas de Governo, p. 108). Assim, o homem-artífice cria esse “Deus Mortal ao qual devemos abaixo do Deus Imortal, nossa paz e defesa” (Leviatã, cap. XVII, p. 110).

Hoje podemos questionar se essa pessoa soberana é mesmo capaz de impor medo a todos, e se de fato garante a liberdade e a paz dos súditos, devido às situações de miséria social que vivemos, direta ou indiretamente. A sociedade capitalista, mesmo com a evolução de suas instituições, mantém-se num estado de guerra. As instituições jurídicas não garantem a paz, o que é devido à própria natureza. No De Cive, ao mesmo tempo em que o Estado aparece como solução para a paz civil, está implícita uma insolubilidade contínua, devido à natureza egoísta do homem, a qual se prolonga para as própria relações internacionais.

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

O reino sacerdotal e o poder eclesiástico de acordo com Hobbes

Em resposta a duas perguntas de Guilherme Rocha Botelho, acadêmico de Direito da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.


A - O reino sacerdotal em Israel

1 – Em Israel, que era um reino sacerdotal, Moisés tinha tanto a autoridade civil quanto a religiosa e como lugar-tenente de Deus podia delegar o poder ao sumo sacerdote e aos demais sacerdotes, conforme o texto a seguir:

“Disse o SENHOR a Moisés: Toma Josué, filho de Num, homem em quem há o Espírito, e impõe-lhe as mãos; apresenta-o perante Eleazar, o sacerdote, e perante toda a congregação; e dá-lhe, à vista deles, as tuas ordens. Põe sobre ele da tua autoridade, para que lhe obedeça toda a congregação dos filhos de Israel”. (Números 27: 18 a 20)

Aqui, a autoridade de Moisés é sacerdotal, mas claramente se vê que, diante da congregação dos filhos de Israel, ele era o líder político que legitimava o poder do sacerdote a respeito das questões religiosas (“põe sobre ele da tua autoridade”).

2 – O primeiro rei de Israel, Saul, recebeu uma unção do profeta Samuel, como escolhido de Deus para reinar, e foi por desobedecer à palavra de Deus, enviada através de Samuel, que tinha a autoridade sacerdotal, que Saul perdeu o reino, bem como não teve dinastia real, conforme os textos abaixo, de I Samuel:

“Esperou Saul sete dias, segundo o prazo determinado por Samuel; não vindo, porém, Samuel a Gilgal, o povo se foi espalhando dali. Então, disse Saul: Trazei-me aqui o holocausto e ofertas pacíficas. E ofereceu o holocausto. Mal acabara ele de oferecer o holocausto, eis que chega Samuel; Saul lhe saiu ao encontro, para saudá-lo. Samuel perguntou: Que fizeste? Respondeu Saul: Vendo que o povo se ia espalhando daqui, e que tu não vinhas nos dias aprazados, e que os filisteus já se tinham ajuntado em Micmás, eu disse comigo: Agora, descerão os filisteus contra mim a Gilgal, e ainda não obtive a benevolência do SENHOR; e, forçado pelas circunstâncias, ofereci holocaustos. Então, disse Samuel a Saul: Procedeste nesciamente em não guardar o mandamento que o SENHOR, teu Deus, te ordenou; pois teria, agora, o SENHOR confirmado o teu reino sobre Israel para sempre. Já agora não subsistirá o teu reino. O SENHOR buscou para si um homem que lhe agrada e já lhe ordenou que seja príncipe sobre o seu povo, porquanto não guardaste o que o SENHOR te ordenou” (I Sm13: 8 a 1 4)

“Então, disse Samuel a Saul: Espera, e te declararei o que o SENHOR me disse esta noite. Respondeu-lhe Saul: Fala. Prosseguiu Samuel: Porventura, sendo tu pequeno aos teus olhos, não foste por cabeça das tribos de Israel, e não te ungiu o SENHOR rei sobre ele? Enviou-te o SENHOR a este caminho e disse: Vai, e destrói totalmente estes pecadores, os amalequitas, e peleja contra eles, até exterminá-los. Por que, pois, não atentaste à voz do SENHOR, mas te lançaste ao despojo e fizeste o que era mau aos olhos do SENHOR? Então, disse Saul a Samuel: Pelo contrário, dei ouvidos à voz do SENHOR e segui o caminho pelo qual o SENHOR me enviou; e trouxe a Agague, rei de Amaleque, e os amalequitas, os destruí totalmente; mas o povo tomou do despojo ovelhas e bois, o melhor do designado à destruição para oferecer ao SENHOR, teu Deus, em Gilgal. Porém Samuel disse: Tem, porventura, o SENHOR tanto prazer em holocaustos e sacrifícios quanto em que se obedeça à sua palavra? Eis que o obedecer é melhor do que o sacrificar, e o atender, melhor do que a gordura de carneiros. Porque a rebelião é como o pecado de feitiçaria, e a obstinação é como a idolatria e culto a ídolos do lar. Visto que rejeitaste a palavra do SENHOR, ele também te rejeitou a ti, para que não sejas rei. (I Sm 15: 16 a 23)

3 - De acordo com a teologia da aliança, os reis de Israel deveriam servir primeiro a Deus, como Deus único, conforme o primeiro dos 10 mandamentos, mas a maioria deles, bem como da parte do povo, quebrou a aliança com Deus, sendo castigados. Porém, da parte de Deus, essa aliança nunca foi quebrada, e seus profetas sempre falaram de arrependimento, tanto aos reis quanto ao povo, e de restauração vinda de Deus. Assim foi para quem esteve na Babilônia etc.

4 – O reino sacerdotal, de acordo com Hobbes, durou de Moisés a Saul, quando começou a Monarquia em Israel, e durou até o cativeiro na Babilônia. Depois, quando Ciro, rei da Pérsia, autorizou os judeus a voltarem e a restaurar o culto a Deus, sob sua tutela, começa novamente um reino sacerdotal, sob Esdras e Neemias. Aquela unidade política, porém Israel não mais teve, pois depois foi dominado por Alexandre e posteriormente por Roma.

B - A Origem e a sucessão do poder eclesiástico

A hierarquia da Igreja, nos tempos apostólicos, era feita de acordo com o carisma e as virtudes dos membros da comunidade:

1 – Jesus ensinou por três anos, e dentre os que estavam com ele escolheu doze para que fossem enviados para pregar às ovelhas perdidas da casa de Israel, e Lucas afirma o seguinte:

“Naqueles dias, retirou-se para o monte, a fim de orar, e passou a noite orando a Deus. E, quando amanheceu, chamou a si os seus discípulos e escolheu doze dentre eles, aos quais deu também o nome de apóstolos: Simão, a quem acrescentou o nome de Pedro, e André, seu irmão; Tiago e João; Filipe e Bartolomeu; Mateus e Tomé; Tiago, filho de Alfeu, e Simão, chamado Zelote; Judas, filho de Tiago, e Judas Iscariotes, que se tornou traidor. (Lucas 6:12-16)

2 - Quando Judas foi sucedido entre os 12, o texto bíblico fala das seguintes exigências, de acordo com Atos dos Apóstolos: “É necessário, pois, que, dos homens que nos acompanharam todo o tempo que o Senhor Jesus andou entre nós, começando no batismo de João, até ao dia em que dentre nós foi levado às alturas, um destes se torne testemunha conosco da sua ressurreição”. (Atos 1: 21-22).

3 – Os “diáconos”, como foram chamados pela tradição os escolhidos para atenderem aos necessitados, destes, especialmente as viúvas de origem grega, deveriam atender às seguintes exigências:

“Ora, naqueles dias, multiplicando-se o número dos discípulos, houve murmuração dos helenistas contra os hebreus, porque as viúvas deles estavam sendo esquecidas na distribuição diária. Então, os doze convocaram a comunidade dos discípulos e disseram: Não é razoável que nós abandonemos a palavra de Deus para servir às mesas. Mas, irmãos, escolhei dentre vós sete homens de boa reputação, cheios do Espírito e de sabedoria, aos quais encarregaremos deste serviço; e, quanto a nós, nos consagraremos à oração e ao ministério da palavra. O parecer agradou a toda a comunidade; e elegeram Estêvão, homem cheio de fé e do Espírito Santo, Filipe, Prócoro, Nicanor, Timão, Pármenas e Nicolau, prosélito de Antioquia. Apresentaram-nos perante os apóstolos, e estes, orando, lhes impuseram as mãos”. (Atos 6:1-6).

Observe que havia exigências para essa função (veja os destaques em negrito), e que a escolha foi feita pela comunidade – eis aí um sinal de democracia, comum entre os próprios judeus nalgumas ocasiões, como no caso da legitimação de Moisés como líder no Egito, pois ali ele foi reconhecido pelos anciãos de Israel.

Observe também que a autoridade sobre eles é local, não tem um caráter propriamente civil, faz parte de uma comunidade dentro da grande commonwealth que é o Estado, e é delegada de forma carismática, pela imposição das mãos dos apóstolos, os quais, como diz Hobbes, receberam o poder do próprio Cristo.

Por ser assim é que Hobbes afirma que os profetas, Cristo, os apóstolos e o Papa não tinham poder sobre o soberano civil, mas eram seus conselheiros, podendo ou não ser obedecidos por ele e ainda que um soberano professasse a fé em Cristo, suas decisões morais na área da ação política não faziam parte do credo, mas da natureza das coisas na Política.

4 – Quanto aos presbíteros, que faziam parte do ensino e da liderança da Igreja apostólica, o NT fala que eles eram eleitos pela comunidade e resolviam algumas questões em conselhos:

”E, promovendo-lhes, em cada igreja, a eleição de presbíteros...”. (Atos 14:23).
“... Então, se reuniram os apóstolos e os presbíteros para examinar a questão”.
“... Então, pareceu bem aos apóstolos e aos presbíteros...”. (Atos 15.6 e 22).

5 - Paulo deixou as seguintes exigências para a escolha de presbíteros e diáconos nas novas comunidades que eram fundadas:

5.1 - Presbíteros:

“É necessário, portanto, que o bispo seja irrepreensível, esposo de uma só mulher, temperante, sóbrio, modesto, hospitaleiro, apto para ensinar; não dado ao vinho, não violento, porém cordato, inimigo de contendas, não avarento; e que governe bem a própria casa, criando os filhos sob disciplina, com todo o respeito (pois, se alguém não sabe governar a própria casa, como cuidará da igreja de Deus?); não seja neófito, para não suceder que se ensoberbeça e incorra na condenação do diabo. Pelo contrário, é necessário que ele tenha bom testemunho dos de fora...”.

5.2 – Diáconos:

“Semelhantemente, quanto a diáconos, é necessário que sejam respeitáveis, de uma só palavra, não inclinados a muito vinho, não cobiçosos de sórdida ganância,
conservando o mistério da fé com a consciência limpa. Também sejam estes primeiramente experimentados; e, se se mostrarem irrepreensíveis, exerçam o diaconato. Da mesma sorte, quanto a mulheres, é necessário que sejam elas respeitáveis, não maldizentes, temperantes e fiéis em tudo. O diácono seja marido de uma só mulher e governe bem seus filhos e a própria casa”. (I Timóteo 3.2 a 11) .

Observe que, mesmo sendo uma instituição marcada pelo carisma, como dirá a Sociologia, é uma instituição que tem princípios morais que a distinguem da moral romana, por exemplo, em relação à família... etc.

6 – O próprio Pedro, que era contado entre os 12, e de fato tinha uma liderança entre eles, não seria a favor do domínio exercido pelo Papado sobre as consciências e sobre a propriedade das pessoas, bem como sobre a política.

Compare essa afirmação do apóstolo a seguir com o que citarei logo depois, de Hobbes:

Pedro:
“Rogo, pois, aos presbíteros que há entre vós, eu, presbítero como eles, e testemunha dos sofrimentos de Cristo, e ainda co-participante da glória que há de ser revelada: pastoreai o rebanho de Deus que há entre vós, não por constrangimento, mas espontaneamente, como Deus quer; nem por sórdida ganância, mas de boa vontade; nem como dominadores dos que vos foram confiados, antes, tornando-vos modelos do rebanho. (I Epístola de Pedro 5:1 a 3)

Hobbes:
“... Haverá alguém que não seja capaz de ver para benefício de quem contribuía acreditar-se que um rei só recebe de Cristo sua autoridade no caso de ser coroado por um bispo? Que um rei, se for sacerdote, não pode casar-se? Que se um príncipe nasceu de um casamento legítimo ou não é assunto que deve ser decidido pela autoridade de Roma? Que os súditos podem ser libertos de seu dever de sujeição, se a corte de Roma tiver condenado o rei como herege?... De modo que posso atribuir todas as mudanças de religião no mundo a uma e à mesma causa, isto é, sacerdotes desprezíveis, e isto não apenas entre os católicos, mas até naquela Igreja que mais presumiu de Reforma”.
(Final do Cap. XII do Leviathan, Os Pensadores).


C - O poder pertence a Cristo, Senhor da Igreja

Como ele mesmo disse, de acordo com Mateus 28: 18: “Toda a autoridade me foi dada no céu e na terra”.
O mesmo é afirmado em João 19: 10-11:
“Então, Pilatos o advertiu: Não me respondes? Não sabes que tenho autoridade para te soltar e autoridade para te crucificar? Respondeu Jesus: Nenhuma autoridade terias sobre mim, se de cima não te fosse dada; por isso, quem me entregou a ti maior pecado tem”.

E de acordo com o Evangelho, Cristo se entregou a Pilatos por nossos pecados, e ressuscitou para nossa justificação, conforme ensina Paulo, que não pregou um Evangelho diferente dos demais apóstolos. E o próprio Cristo afirmou, diante de Pilatos, de acordo com João 18.36: “O meu reino não é deste mundo. Se o meu reino fosse deste mundo, os meus ministros se empenhariam por mim, para que não fosse eu entregue aos judeus; mas agora o meu reino não é daqui”.

Portanto, mesmo os reis podem fazer parte do Reino de Deus e a ele se submeterem, mas para Hobbes, a soberania civil não pode submeter-se à Igreja, se não, pecaria contra o princípio da não contradição, pois “soberania e caráter absoluto do governo são unum et idem”, conforme afirma Bobbio em seu livro A Teoria das Formas de Governo.

E não pensemos que esse Estado é tão absoluto assim, pois ele só deverá ser obedecido enquanto preservar o maior bem da comunidade, a paz civil.

Enfim, Hobbes considera que a Igreja só será reconhecida como instituição civil pelo Estado, no capítulo do Leviathan em que explica os significados da palavra “Igreja”. Porém, afirma noutra parte que ninguém, por obedecer ao poder civil, deverá perder a vida eterna, que é um bem maior, indubitavelmente, e foi nesse sentido, pois, que Pedro disse: “Antes, importa obedecer a Deus do que aos homens”. (Atos 5:29)

D - Sendo assim, onde está o reino de Deus? Quem dele participa?

Ora, eis, de acordo com Hobbes, quem dele participa:

“No reino de Deus, não consideramos como seus súditos os corpos inanimados ou irracionais, embora estejam subordinados ao poder divino; e não os contamos, porque eles não entendem o que sejam os mandamentos e ameaças de Deus; nem tampouco os ateus, porque não acreditam que Deus exista; nem mesmo os que, acreditando na existência de Deus, não crêem, contudo, que ele governe estas coisas inferiores; pois estes últimos, embora sejam governados pelo poder de Deus, não reconhecem, porém nenhum de seus mandamentos, nem temem suas ameaças. Considera-se pertencente ao reino de Deus, portanto, apenas esses que confessam ser ele o regente de todas as coisas, e acreditam que ele tenha dado mandamentos aos homens, e fixado castigos para quem os descumprir. Os demais não devemos chamar súditos, mas inimigos, de Deus”. (Do Cidadão, Parte III: Religião)

Hobbes, indiretamente, consciente ou inconscientemente, está afirmando o mesmo que Cristo:
“Interrogado pelos fariseus sobre quando viria o reino de Deus, Jesus lhes respondeu: Não vem o reino de Deus com visível aparência. Nem dirão: Ei-lo aqui! Ou: Lá está! Porque o reino de Deus está dentro de vós”. (Lucas 17: 20-21)


Conclusão

A questão da obediência civil e da obediência ao reino de Deus inquietava também a outros grandes homens do século XVII.
Hobbes deu uma solução baseada na Filosofia Civil e nas Escrituras, reconhecendo não só a necessidade da obediência civil, mas também que o Leviatã é um deus mortal, abaixo do Deus imortal.
Se fôssemos para a área da Música, veríamos o Reino de Deus ser defendido com a mais pura arte e devoção na obra do grande compositor Georg Friedrich Häendel, que possivelmente estava dialogando com o contexto social, político e religioso da Inglaterra ao compor O Messias, cujo coro mais famoso, Halleluiah, afirma: “O reino deste mundo se tornou de nosso Senhor e do seu Cristo e Ele reinará para sempre e sempre”, onde o gênio insiste em repetir: “Rei dos Reis e grande Senhor”.

Proclamar, gritar, com devoção e arte: “King of Kings and Lord of the Lords”, naquele contexto, não seria simplesmente a repetição do coro de um grande Oratório, mas poderia ser, antes de tudo, uma mensagem profética, confirmando a doutrina apostólica de que “antes importa obedecer a Deus do que aos homens” (Atos 5:29).
Como disse Isaías: “The voice of him that crieth in the wilderness, Prepare ye the way of the LORD, make straight in the desert a highway for our God" (Is 40:3 - King James version, a mesma que Hobbes leu)

Ao meu ver, todo o Messias é inspirado nessa "voz de um que grita no deserto: Preparai o caminho do Senhor, fazei no ermo vereda a nosso Deus".

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

As Escrituras na argumentação de Hobbes sobre a Soberania Civil

Comunicação apresentada no Colóquio Internacional Hobbes:
Natureza, História e Política” em 06-10-2009 - Departamento de Filosofia da USP
Autor: Isaar Soares de Carvalho - Doutorando em Filosofia – UNICAMP
Orientador: Prof. Dr. João C. K. Quartim de Moraes
À memória de meu pai, Presbítero Emérito da IPI do Brasil, Epaminondas Soares de Carvalho, que foi alfabetizado através das Escrituras.

OBJETO DE ESTUDO
Nosso objetivo é examinar forma como Thomas Hobbes interpreta as Escrituras para corroborar sua tese de que o poder civil está acima de qualquer instituição social ou política, principalmente, em seu contexto, sobre a instituição eclesiástica.

OS LIMITES DA OBEDIÊNCIA CIVIL E RELIGIOSA
Hobbes afirma:
“Os súditos devem aos soberanos simples obediência em todas as coisas, de onde se segue que sua obediência não é incompatível com as leis de Deus”. (Leviathan, XXX).
Porém, Hobbes parte da premissa de que “o conhecimento de toda lei depende do conhecimento do soberano poder”. (Leviathan, XXXI).

Conhecendo as Leis divinas e as civis
O cidadão deve, pois, conhecer as leis de Deus (este detém o soberano poder) para distinguir se o que a lei civil ordena é contrário a elas ou não. Com isso evitará o dilema de pecar contra o poder civil ou contra a religião:

Eis o dilema do cidadão do Séc. XVII:
1 – Se obedecesse excessivamente ao poder civil, ofenderia a Divina Majestade.
2 – Mas “com receio de ofender a Deus”, poderia transgredir os “mandamentos da república”.

PRINCIPAIS DEMANDAS ATENDIDAS PELA OBRA DE CIVE
Na obra Do Cidadão há uma dialética entre ser cidadão do Reino de Deus e da Pólis terrestre, demonstrada no subtítulo do livro, onde Hobbes afirma que fará uma dissertação a respeito do homem como membro de uma sociedade primeiro secular, depois sacra, que falará dos elementos da filosofia civil de acordo com as leis naturais e divinas, e que demonstrará qual é a origem da justiça e em que consiste a essência da religião cristã, e também da natureza, limites e qualificações do comando e da sujeição.

A IMPORTÂNCIA DAS ESCRITURAS NA DEDICATÓRIA DO LEVIATHAN
Na Dedicatória do Leviathan encontra-se uma afirmação que demonstra que, além de adotar uma concepção do Estado que se opõe ao magistério eclesiástico, Hobbes se vale das Escrituras adotando uma nova hermenêutica, para defender a superioridade do poder civil sobre todas as esferas da vida social, principalmente a religião. A afirmação à qual nos referimos é a seguinte:

“O que talvez possa ser tomado como grande ofensa são certos textos das Sagradas Escrituras, por mim usados com uma finalidade diferente da que geralmente por outros é visada. Mas fi-lo com a devida submissão. E também, dado ao meu assunto, porque tal era necessário. Pois eles [os textos] são as fortificações avançadas do inimigo, de onde este impugna o poder civil”. (Leviathan, Dedicatória).

A idéia central dessa afirmação aparecerá ao longo do Livro, e o que é indicado na Dedicatória será demonstrado de forma recorrente no texto dirigido ao “leitor sem medo”, como demonstra Renato Janine Ribeiro, texto que se encerrará com a corajosa afirmação, dirigida tanto à Igreja quanto ao poder civil, de que “a verdade que não se opõe aos interesses ou aos prazeres de ninguém é bem recebida por todos”. (Leviathan, Revisão e Conclusão)

HOBBES E A CRÍTICA BÍBLICA
Em relação à Bíblia, Hobbes antecipa teses hoje conhecidas sobre a História da formação de seus textos, porém pouco se lhe credita sobre sua contribuição à Crítica Bíblica em nosso tempo. Em relação às datas de redação ele enfatiza em primeiro lugar a afirmação de Gn 12:6: “Atravessou Abrão a terra até Siquém, até o carvalho de Moré. Nesse tempo os cananeus habitavam essa terra”.

Outras citações que indicam a posterioridade dos textos:
Afirmações como essa, abundantes no Antigo Testamento, indicam que muitos textos foram escritos longo tempo após a ocorrência dos fatos narrados. Outros textos usam expressões indicativas disso, tais como:

A expressão “até ao dia de hoje” aparece em vários textos do Pentateuco, bem como em outros livros.
Gn 35:20: “Sobre a sepultura de Raquel levantou Jacó uma coluna que existe até ao dia de hoje” (Gn 35:20). O que confirma que o texto foi escrito muito tempo depois do fato narrado.

Jz 1:21: “Os jebuseus habitam com os filhos de Benjamin em Jerusalém até ao dia de hoje”.
Jz 1,26: “E edificou uma cidade, e lhe chamou Luz; este é o seu nome até ao dia de hoje”.
Jz 6:24: “Ainda até ao dia de hoje está o altar em Ofra”.
Jz 10:4: “E tinham trinta cidades, a que chamavam Havote-Jair, até ao dia de hoje, as quais estão na terra de Gileade”.
Jz 15:19: “ Daí chamar-se aquele lugar Em-Hacoré até ao dia de hoje”.

O Livro de Juízes seria um texto bem tardio
É impressionante a observação de Hobbes sobre Juízes 18:30, que diz: “Os filhos de Dã levantaram para si aquela imagem de escultura; e Jônatas, filho de Gerson, o filho de Manassés, ele e seus filhos foram sacerdotes da tribo dos danitas, até ao dia do cativeiro do povo”. Isso indica, de acordo com ele, que o texto é posterior ao cativeiro babilônico.

MOISÉS E A AUTORIA DO PENTATEUCO
Sobre o Pentateuco Hobbes afirma que Moisés “escreveu tudo o que aí se diz que escreveu”, isto é, as afirmações do texto que dizem claramente que eleu, são por Hobbes consideradas fidedignas. Eis os textos em que essas expressões aparecem:
Êx 17:14: “Então disse o Senhor a Moisés: Escreve isto para memória num livro, e repete-o a Josué...”.
Êx 24:3s: “Veio, pois, Moisés, e referiu ao povo todas as palavras do Senhor e todos os seus estatutos... Moisés escreveu todas as palavras do Senhor...”
Dt 31:9: “Esta lei escreveu-a Moisés e a deu aos sacerdotes...”. Trecho que confirma a tese de Hobbes sobre o reino sacerdotal de Israel.
Dt 31:22: “Moisés naquele mesmo dia escreveu este cântico”.
Êx 34:28: “Escreveu nas tábuas as palavras da aliança, as dez palavras”. A narrativa inicialmente afirma que foi Deus quem escreveu as segundas tábuas, mas conclui dizendo que foi Moisés. Porém Dt 10:4 afirma: “... Escreveu o Senhor nas tábuas...”. Isso indica a posterioridade, as tradições orais, a autoria múltipla do texto, bem como seu caráter sagrado.
Nm 33:2: “Escreveu Moisés as suas saídas, caminhada após caminhada...”
Dt 31:24: “Tendo Moisés acabado de escrever todas as palavras desta lei num livro...”

ALGUMAS FONTES USADAS PELOS AUTORES DO AT
Hobbes observa várias fontes do AT, tais como:
O Livro das Guerras do Senhor (Nm 21:14)
O Livro dos Justos (Js 10:13; II Sm 1:18)
A afirmação: "Josué escreveu estas palavras no livro da lei de Deus" (Js 24:26) amplia o conceito de Livro da Lei, não mais restrito ao Pentateuco, ou seria Josué um co-autor deste?
Os escritores utilizaram outras fontes, citadas em Reis e Crônicas:
O Livro da História de Salomão (I Rs 11:41) Livro da História dos Reis de Israel (I Rs 14:19)
O Livro da História dos Reis de Judá (I Rs 14: 29)
Pelo que aqui verificamos sobre o criticismo literário de Hobbes, portanto, o Tratado Teológico-Político de Espinosa não é, como pretendem alguns, a primeira obra a examinar a história da formação dos textos bíblicos. Hobbes publica o Leviathan em 1651, e Espinosa publicará o Tratado 19 anos depois, em 1670, o que não se deve esquecer.

EXEMPLOS DE REFERÊNCIAS DE HOBBES À BÍBLIA COMO PARTE DE SUA ARGUMENTAÇÃO
A primeira vez que Hobbes se refere à Bíblia no De Cive é, possivelmente, quando usa a expressão:“... Através da justiça e da caridade, irmãs gêmeas da paz...”, referindo-se ao Salmo 85,10, que diz: “a justiça e a paz se beijaram”, trecho citado diretamente depois, quando ele examina as bases bíblicas da lei fundamental de natureza que ordena que se busque a paz. (De Cive, Parte I, Cap. IV, p. 87).

A abordagem hobbesiana dos 10 Mandamentos
A importância do recurso às Escrituras aparece de forma ainda mais explícita quando ele compara os Dez Mandamentos ou As Dez Falas (Assêret Hadibrot) aos deveres civis e aos direitos do soberano representante, no Cap. XXX do Leviathan:

60 % dos 10 mandamentos dizem respeito à Lei civil:

É relevante a observação de Hobbes de que os 4 primeiros mandamentos dizem respeito aos deveres para com Deus, enquanto os outros 6 referem-se aos deveres civis.
Deveres para com Deus
1º) Não ter outros deuses diante dele.
2º.) Não fazer para imagens de escultura, não adorá-las, nem lhes prestar culto.
3º.) Não tomar o nome de Deus em vão.
4º.) Santificar o dia do Sábado.

Deveres Civis
5º.) Honrar ao pai e à mãe
6º.) Não Matar
7º.) Não Adulterar
8º.) Não furtar. (6 a 8: Preservação da propriedade).
9º.) Não dizer falso testemunho.
10) Não cobiçar (“O só cobiçar já é injusto)”.

A Súmula dos 10 Mandamentos
A súmula dos 10 mandamentos encontra-se no amor a Deus sobre todas as coisas e no amor ao próximo como a si mesmo. A segunda tábua “se reduz a esse mandamento de caridade mútua, Amarás a teu próximo como a ti mesmo, assim como a súmula da primeira tábua se reduz ao amor a Deus”. (Leviathan, XXX)

As Leis Civis e a conservação da Vida
Em relação aos deveres civis nos 10 Mandamentos, Hobbes afirma que “entre as coisas tidas em propriedade, aquelas que são mais caras ao homem são sua própria vida e membros, e no grau seguinte (na maior parte dos homens) aquelas que se referem à afeição conjugal, e depois delas as riquezas e os meios de vida”. (Leviathan, XXX)

Outras sínteses da Lei de Deus e da Lei Civil na Bíblia
1 -“De tudo o que se tem ouvido, a suma é: teme a Deus, e guarda os seus mandamentos; porque isto é o dever de todo homem” (Ec 12,13).
2 - “Dai, pois, a César o que é de Cesar, e a Deus o que é de Deus” (Mt 22:21).
3 – “Tratai todos com honra, amai os irmãos, temei a Deus, honrai o rei”. (I Pd 2.17)

RELAÇÕES ENTRE POLÍTICA E RELIGIÃO
Numa imagem publicada na edição de 1651 do De Cive vê-se a própria seqüencia da argumentação de Hobbes: A Liberdade é conseqüência do Domínio e a Religião aparece encimada e parece não interferir na esfera política.
Um profeta, apóstolo, um sacerdote ou o próprio Papa serão apenas conselheiros do soberano, não tendo sobre ele autoridade, pois a soberania é, por natureza, absoluta. Mesmo que o soberano civil adote uma confissão de fé, isso não interferirá sobre a natureza das coisas na Política.

HAVERIA ALGUMA FORMA DE GOVERNO SUPERIOR PARA HOBBES?
“A prosperidade de um povo governado por uma assembléia aristocrática ou democrática não vem nem da aristocracia nem da democracia, mas da obediência e concórdia dos súditos; assim como também o povo não floresce numa monarquia porque um homem tem o direito de governá-lo, mas porque ele lhe obedece. Retirem seja de que Estado for a obediência (e conseqüentemente a concórdia do povo) e ele não só não florescerá, como a curto prazo será dissolvido”. (Leviathan, XXX)

“NÃO DE PRINCIPE, MAS DE CIVE
Contra as interpretações de Hobbes como absolutista, o Prof. Renato J. Ribeiro afirma:
“... Já se comentou, muito, que Hobbes escreve De Cive e não De Principe: interessa-se mais pela obediência que pelo exercício do poder. Ocupa-se mais do cidadão que do governante”. (“Thomas Hobbes o la paz contra el clero”, p. 23).
E conclui:
“... Ao afirmar que de um poder irresistível decorre direito absoluto, ele completa que tal poder é somente de Deus; homem nenhum é tão forte que outros não o possam vencer, por coligação, astúcia, ou opondo a seu sono a vigília; só Deus nunca dorme, só Ele tem direito absoluto. (Que lógica resta, então, aos que chamam Hobbes de ateu e defensor do direito absoluto dos reis?)”. [Idem, p. 23].

SERIA HOBBES UM DESCRENTE?

Hobbes e a Redenção:
“Nossa redenção foi levada a cabo em sua primeira vinda, pelo sacrifício mediante o qual se ofereceu na cruz por nossos pecados”.
(Leviathan, Cap. XLI).
A - “Há apenas um Deus”. (Do Cidadão, p. 309).
B - Ele refuta o Panteísmo, reconhecendo Deus como causa do mundo, como se verifica nessa afirmação: “Dizer que o mundo é Deus é dizer que não há causa dele, isto é, que não existe Deus”. (Leviathan, Cap. XXXI, p. 215)
C – Na Epistola Dedicatória de Do Cidadão ele diz: “Que o Deus do céu coroe Vossa Senhoria com longa vida nesta estação mortal, e, na Jerusalém celestial, com uma coroa de glória”. - Seria mera formalidade?
D – A obediência a Deus está em primeiro lugar:
“...Como devemos obedecer antes a Deus que aos homens...”. (Do Cidadão, III, XVIII, p. 359-60).
Ver Atos 5: 29: “...Antes importa obedecer a Deus do que aos homens”.
E – O que é necessário para a salvação:
“O propósito dos evangelistas prova que para a salvação é necessário apenas crer num só artigo – que Jesus é o Cristo” (Idem, p. 367).
Ver I Pd 1:9: “...Obtendo o fim da vossa fé, a salvação das vossas almas”.
F - Renato J. Ribeiro observa, na Introdução de Do Cidadão, que muitas discussões e divisões, e mesmo guerras, são feitas em torno de disputas teológicas que não dizem respeito ao essencial: a salvação.
G – Afirmava Hobbes que seu pensamento não poderia ser declarado herético, pois a doutrina do Leviathan não era contrária ao Credo Niceno, e não havia tribunal religioso que pudesse considerá-lo como tal: a Heresia é uma questão do soberano civil, não da Igreja.

Aspectos céticos de Hobbes em relação a alguns pontos da Religião

A – Sobre a ocorrência de Milagres: “... Se acontecer que, numa reunião, se passe o tempo contando histórias..., se um conta alguma maravilha, os demais narrarão milagres, se os tiverem, se não tiverem os inventarão”.(Do Cidadão: Parte I, Cap. I, p. 31, par. 2). No Leviathan ele afirma que não ocorrem mais milagres, os quais teriam durado até à época da Igreja Primitiva.
B – Hobbes declara ser impossível fazer pactos com Deus. Os que afirmavam fazê-los poderiam incitar à desobediência civil. Tanto em Do Cidadão quanto no Leviathan ele é cético quanto aos votos feitos a Deus. Apenas são válidos os pactos e votos legitimados pelo poder civil. (Do Cidadão: Parte I, Cap. II, p. 52-53).
C – Não crê em quem alega falar diretamente a partir de Deus, mas reduz Sua Palavra às Escrituras (Leviathan, XXXVI). Afirma que “Deus não nos fala mais através de Cristo e de seus profetas em voz aberta, mas pelas Sagradas Escrituras, as quais diferentes homens compreendem de modo diferente” (Do Cidadão, p. 360).

O Deus que realmente falou?
“É certo que Deus é o soberano de todos os soberanos, e portanto quando fala a qualquer súdito deve ser obedecido, seja o que for que qualquer potentado terreno ordene em sentido contrário. Mas o problema não é o da obediência a Deus, e sim o de quando e o que Deus disse...” (Leviathan, XXXIII)

Quem de fato era profeta de Deus?
Que houve muito mais falsos do que verdadeiros profetas verifica-se no fato de Ahab (1 Reis 12) ter consultado quatrocentos profetas, e todos eles serem falsos e impostores, com a única exceção de Miquéias”.
No Antigo Testamento os profetas deviam falar de acordo com Moisés e “predizer o que Deus ia fazer acontecer... E no Novo Testamento há apenas um único sinal, que é a pregação da doutrina que Jesus é o Cristo. Quem quer que negasse esse artigo era um falso profeta.”

Da busca das causas naturais a Deus
“A curiosidade, ou amor pelo conhecimento das causas, afasta o homem da contemplação do efeito para a busca da causa, e depois também da causa dessa causa, até que forçosamente deve chegar a esta idéia: que há uma causa da qual não há causa anterior, porque é eterna; que é aquilo a que os homens chamam Deus...

A natureza de Deus é abscôndita
De modo que é impossível proceder a qualquer investigação profunda das causas naturais, sem com isso nos inclinarmos para acreditar que existe um Deus eterno, embora não possamos ter em nosso espírito uma idéia dele que corresponda a sua natureza”. (Leviathan, XII)
“O reconhecimento de um único Deus eterno, infinito e onipotente pode ser derivado do desejo que os homens sentem de conhecer as causas dos corpos naturais, e suas diversas virtudes e operações, mais facilmente que do medo do que possa vir a acontecer-lhes nos tempos vindouros. Pois aquele que de qualquer efeito que vê ocorrer infira a causa próxima e imediata desse efeito...
..., e depois a causa dessa causa, e mergulhe profundamente na investigação das causas, deverá finalmente concluir que necessariamente existe (como até os filósofos pagãos confessavam) um primeiro motor. Isto é, uma primeira e eterna causa de todas as coisas, que é o que os homens significam com o nome de Deus”.

A Palavra de Deus se evidencia na Razão Natural “Não convém renunciar aos sentidos e à experiência, nem àquilo que é a palavra indubitável de Deus, nossa razão natural. Pois foram esses os talentos que ele pôs em nossas mãos para vivermos, até o retorno de nosso abençoado Salvador” (Leviathan, XXX). Deve-se obedecer ao Reino de Deus. Quanto ao Reino Civil, o homem o projeta à luz da razão, a primeira forma de Deus nos falar.

CÂNON, INTERPRETAÇÃO DAS ESCRITURAS E PAZ CIVIL
É a pessoa soberana quem define o que é canônico, isto é, o que diz respeito aos deveres civis e a pessoa soberana deve interpretar ou delegar a alguém a interpretação que seja de acordo com a consecução da paz civil. Uma doutrina, mesmo que seja verdadeira, se prejudicar a paz civil não deverá ser ensinada.

Quando se completou o Cânon do AT
“Todas as Escrituras do Antigo Testamento foram postas na forma que possuem após o regresso dos judeus do cativeiro em Babilônia, e antes do tempo de Ptolomeu Filadelfo, que as mandou traduzir para o grego por setenta homens, que lhe foram mandados da Judéia para esse fim... As Escrituras foram postas na forma que lhes conhecemos por Esdras”. (Leviathan, XXX).
Isso é ensinado no Pontifício Instituto Bíblico de Roma até hoje.

Os Livros considerados Apócrifos
“Os livros Apócrifos nos são recomendados pela Igreja, embora não como canônicos, como livros proveitosos para nossa instrução”. (Leviathan, XXXIII).
Nesse e noutros aspectos, Hobbes “prepara a tolerância na medida em que diz serem indiferentes à salvação, bem como ao Estado e à Igreja, a maior parte dos temas que levam os homens a disputar sobre a religião”. (Do Cidadão, Introd. de R. J. Ribeiro, p. XXXII, n.19).

A Religião do Estado e a Tolerância na Bíblia

Hobbes cita o caso do General sírio Naamã, convertido ao Deus de Israel, como exemplo de obediência civil e de fé em Deus ao mesmo tempo, numa forma de liberdade concedida pelo profeta Elisieu, o que podemos ver também em relação à tolerância religiosa. O General disse a Eliseu: “Nunca mais oferecerá este teu servo holocausto nem sacrifício a outros deuses, senão ao Senhor. Nisto perdoe o Senhor a teu servo; quando o meu senhor entra na casa de Rimom para ali adorar, e ele se encosta na minha mão, e eu também me tenha de encurvar na casa de Rimom, quando assim me prostrar na casa de Rimom, nisto perdoe o Senhor a teu servo. Eliseu lhe disse: Vai em paz”. (II Rs 5: 17-19) Hobbes cita essa passagem em relação à obediência ao poder civil em primeiro lugar, do qual vem a legitimidade sobre a religião, no Cap. XLII do Levitã, afirmando, em primeiro lugar, que Em primeiro lugar, que "a fé é uma dádiva de Deus, que o homem é incapaz de dar ou tirar por promessas de recompensa ou ameaças de tortura. Mas se além disso se perguntar: E se nos for ordenado por nosso príncipe legítimo que digamos com nossa boca que não acreditamos, devemos obedecer a essa ordem? A afirmação com a boca é apenas uma coisa externa, não mais do que qualquer outro gesto mediante o qual manifestamos nossa obediência; o que qualquer cristão, mantendo-se em seu coração firmemente fiel à fé de Cristo, tem a mesma liberdade de fazer que o profeta Eliseu concedeu a Naaman, o sírio".
Em segundo lugar, afirma que "tudo aquilo que um súdito, como era o caso de Naaman, é obrigado a fazer em obediência a seu soberano, desde que o não faça segundo seu próprio espírito, mas segundo as leis de seu país, não é uma ação propriamente sua, e sim de seu soberano; e neste caso não é ele quem nega Cristo perante os homens, mas seu governante e as leis de seu país".

QUEM PARTICIPA DO REINO DE DEUS?
“No reino de Deus, não consideramos como seus súditos os corpos inanimados ou irracionais, embora estejam subordinados ao poder divino; e não os contamos, porque eles não entendem o que sejam os mandamentos e ameaças de Deus; nem tampouco os ateus, porque não acreditam que Deus exista...
... nem mesmo os que, acreditando na existência de Deus, não crêem, contudo, que ele governe estas coisas inferiores; pois estes últimos, embora sejam governados pelo; poder de Deus, não reconhecem, porém nenhum de seus mandamentos, nem temem suas ameaças. Considera-se pertencente ao reino de Deus, portanto, apenas esses que confessam ser ele o regente de todas as coisas, e acreditam que ele tenha dado mandamentos aos homens, e fixado castigos para quem os descumprir. Os demais não devemos chamar súditos, mas inimigos, de Deus”.(Do Cidadão, Parte III: Religião, p. 240 )

ONDE ESTÁ O REINO DE DEUS?
“Deus na verdade reina lá onde suas leis são obedecidas não por medo aos homens, mas por medo a ele”. (De Cive, Cap. XVI).
Noutras palavras, como disse o Cristo: “Porque o reino de Deus está dentro de vós”. (Lc 17: 20-21)

CRISTO E O PODER CIVIL
“Nada foi feito ou ensinado por Cristo que tenda a diminuir o direito civil dos judeus ou de César”.
Dado que ele (Cristo) nada fez senão procurar provar que era o Messias, pela pregação e pelos milagres, ele nada fez contra a lei dos judeus... E também nada fez de contrário às leis de César”.



CONCLUSÃO
Na mesma Dedicatória do Leviathan, que nos inspirou para pesquisar relevância das Escrituras em seu pensamento, Hobbes diz:
“Sou um homem que ama suas próprias opiniões, que acredito em tudo o que digo”.
E como um escriba sábio, que busca em seu tesouro coisas novas e velhas, encontrou nas Escrituras bases para o consentimento, a soberania absoluta, a paz civil, a preservação da vida, que é o nosso maior bem, e o enfrentamento da Igreja, que distorceu as Escrituras, como ele diz:
O maior e principal abuso das Escrituras e em relação ao qual todos os outros são, ou conseqüentes ou subservientes, é distorcê-las a fim de provar que o reino de Deus, tantas vezes mencionado nas Escrituras, é a atual Igreja”. (Leviathan, XLIV).

Seu objetivo começa a ser alcançado mesmo em sua existência, pois ele diz, sobre o Leviathan:
“Ouço dizer que este livro se retira de circulação em Itália, por tratar-se de um livro que causa maior dano à sua religião que todos os escritos de Lutero e Calvino juntos. Veja... que contraste entre essa religião e a razão natural” (Tönnies, Hobbes, p. 40).

Hobbes faz, assim um “retorno às coisas mesmas” em relação ao Reino de Deus, visando a Paz Civil, lendo as Escrituras não maiss como “as fortificações avançadas do inimigo, de onde este ameaça o poder civil”.

Para ele, enfim:
“As Escrituras foram escritas para mostrar aos homens o reino de Deus, e preparar seus espíritos para se tornarem seus súditos obedientes; deixando o mundo, e a filosofia a ele referente, às disputas dos homens, pelo exercício de sua razão natural”. (Levithan, VIII)...

...Afinal, como disse Cristo:

O meu Reino não é deste Mundo” (Jo 18:36)

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ADENDO: HOBBES: UM ILUMINADO?
1 - Na edição de 1651do De Cive aparece a seguinte frase grega:

“Phrontides dasterai sophóterou”.

Ela pode ter um dos significados abaixo:

A – “Partilhadas reflexões do (mais) sábio (de todos)”.
B -"Reflexões iluminadas do mais sábio".

phrontides (pl.): pensamentos, reflexões, meditações.
dasterai (adj. pl.): repartidas, divididas, distribuídas; pode, também, significar "iluminadas"
sophóterou: “do mais sábio”. O termo está no comparativo absoluto.
(Tradução do Grego feita por Paulo Sérgio de Proença, a quem sou muito grato).

2 – Em uma Carta à M. Sorbière d'Orléans, de 25 de abril de 1646, Mersenne afirma, sobre o De Cive:
"Este livro vale um tesouro e seria desejável que os caracteres usados para sua impressão fossem de prata".

3 - E Hobbes afirma sobre sua própria obra:
"Se a física é uma coisa toda nova, a filosofia política o é mais ainda. Ela não é mais antiga que minha obra o De Cive". (Epístola Dedicatória do De Corpore).
(Tradução do Francês: Antonio Juan Dias, a quem também expresso minha gratidão).

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

O que diz respeito à Religião e o que diz respeito à Soberania no pensamento de Hobbes

Prof. Drndo. Isaar Soares de Carvalho – Para a Glória de Deus! – Setembro 2009

Hobbes afirma que, “excetuando apenas este artigo, Jesus é o Cristo, que é o único necessário para a salvação no que se refere à fé interna - todos os demais artigos de fé pertencem à obediência”. (De Cive, Martins Fontes, 1992, Trad. e Introdução de Renato Janine Ribeiro, Parte III, cap. XVIII, 14, p. 377).

Nesse aspecto Hobbes afirma que grande parte dos dogmas dizia respeito não à entrada no reino dos céus, mas a disputas pela “soberania humana”, ao “ganho e ao lucro” e à “glória de espíritos engenhosos”. (Idem)

Dessa forma, Hobbes reduz as questões de obediência ao desejo de acreditar, não à fé interna; ao indivíduo bastava fazer apenas uma profissão externa de uma crença em tudo o que fosse proposto pela Igreja. Isso significa que o cidadão não precisava acreditar internamente em todos os dogmas da Igreja, mas, se o quisesse, poderia afirmar aceitá-los publicamente, sem necessariamente neles crer.
Hobbes afirma ainda que “a discussão sobre a propriedade da Igreja é uma discussão sobre o direito de soberania”. (Idem).

Sobre a pretensão papal a respeito da infalibilidade, Hobbes afirma que alguém que não errasse teria “assegurado um domínio pelo sobre o gênero humano nos planos tanto temporal quanto espiritual”. (Idem, p. 378). Portanto, esse dogma era de caráter político. Na mesma linha, argumentando a respeito do privilégio da Igreja de interpretar as Escrituras, Hobbes afirma que dele decorreria “autoridade simples e absoluta para por termo a toda espécie de controvérsia”. (Idem, p. 378) E, por conseguinte, quem tivesse esse privilégio teria não só o poder sobre todos que a reconhecessem como Palavra de Deus, mas também poder para perdoar, reter pecados e excomungar, para instituir sociedades religiosas, às quais os monges obedeceriam, mesmo estando num Estado inimigo, o que levaria ao conceito de um Estado dentro do Estado, poder de julgar sobre a validade de um matrimônio e, por conseqüência, sobre a “herança e sucessão de todos os bens e direitos”, tanto de particulares quanto de príncipes e soberanos. (Idem, p. 378).

Em relação ao celibato, também era uma forma de controle, pois, por um lado, “os solteiros são menos compatíveis com a vida civil do que os casados”, e por outro lado, como o sacerdócio exige o celibato, os príncipes deveriam abrir mão, por causa dele, ou do sacerdócio, ou do principado hereditário. (Idem, p. 378).

Quanto à canonização dos santos também era uma forma de controle, e herdada do paganismo, pois no império romano costumavam-se considerar deuses os ex-imperadores, o que depois passou a ser feito em sua própria vida, numa forma de honra e prestígio político, e a igreja fez o mesmo, porém de forma ainda mais perjura, pois tomou o nome de Deus em vão, por questões meramente humanas, e assim, o humano foi divinizado.

No Cap. XII do De Cive, intitulado “Das causas internas que tendem à dissolução dos governos”, Hobbes argumenta, com base no princípio de que antes de haver o poder soberano não havia ordens a obedecer e que, portanto, não havia justiça ou injustiça, que os particulares não podem julgar sobre o que é justo ou injusto, pois ao reivindicarem o conhecimento do bem e do mal, “desejam igualar-se aos reis, o que não é compatível com a segurança da república”. (De Cive, Cap. XII, p. 204). Para justificar seu argumento com base nas Escrituras, cita o texto de I Reis que fala da oração de Salomão, no qual o jovem rei assim pede a Deus: “... um coração entendido para julgar o teu povo, para que prudentemente possa discernir ente o bem e o mal”. (Idem).

Diante da ameaça de sedição representada pela Igreja, quer por suas interferências no poder civil, quer por seu controle da mentalidade dos fiéis, chegando a hierarquia eclesiástica, a pretender controlar o mundo, Hobbes afirma que “o legislador sempre é aquela pessoa que detém o poder supremo na república, isto é, numa monarquia o monarca”. (Idem). Ele argumenta com base no pacto recíproco entre os homens que instituíram o governo e conclui que “os reis legítimos assim tornam justas as coisas que eles ordenam, só com ordená-las, e injustas as que eles proíbem, por só proibi-las”. (Idem).

Visando a preservação do direito de legislar, Hobbes chega mesmo a comparar o soberano a Deus, citando a desobediência de Adão e Eva ao comerem da árvore da ciência do bem e do mal. (Idem) Para ele essa proibição constituiu-se no mais antigo dos mandamentos. Em sua metáfora, ter ciência do bem e do mal era atribuição de Deus. Da mesma forma, ter a ciência do justo e do injusto é próprio do soberano civil. O soberano, assim será esse deus mortal, conceito que já aparece, portanto, no De Cive, mas que será exposto nessa acepção no Leviathan.

Porém, Hobbes parece exagerar em seu uso do texto bíblico em relação ao caráter absoluto da soberania, quando, argumentando a respeito da necessidade da obediência do povo ao poder civil, independentemente da forma de governo, seja uma aristocracia, uma democracia ou uma monarquia, afirma que os reis são deuses, donde podemos inferir que ele afirma que desobedecer ao poder civil, em qualquer das formas citadas, é o mesmo que quebrar o primeiro mandamento civil:

“Este desejo de mudar é como a quebra do primeiro dos mandamentos de Deus, pois aí Deus diz: Non habeis Deos alienos. Não terás os deuses das outras nações; em outro texto referente aos reis, que eles são deuses”. (Leviathan, cap. XXX, p. 202).

Contudo, considerando os argumentos já expostos sobre a preservação da paz civil e da vida, apesar do exagero do argumento, observando-se o Cap. XIII do De Cive, intitulado “Dos deveres de quem governa”, bem como o Cap. XXX do Leviathan, “Da missão do soberano representante”, poderíamos afirmar que o argumento de Hobbes tem uma finalidade pedagógica. E como Hobbes afirma que um Estado não deverá ser obedecido se não for capaz de proteger os súditos e que “a representação morre, quando o representante fere o representado”, mais uma vez se confirma que o estado é um deus mortal, isto é, é soberano, mas falível.

– Mas haveria mesmo um deus mortal? – Não é isso uma metáfora sobre a soberania e sua falibilidade? Só pode ser, pois pensador tão rigoroso não cometeria tal pecado contra o princípio de não contradição, pois, se é deus, não é mortal, e se é mortal, então não é deus. Daí decorreria, facilmente, sua afirmação de que deve ser obedecida a espada que garantir a paz civil e que, portanto, contra esse soberano chamado de deus pode haver desobediência e rebelião.

Assim, Hobbes afirma a necessidade de um Estado suficientemente forte para garantir a paz civil, o qual deverá ser obedecido para que esta se efetive, porém, perdendo essa capacidade, fica o cidadão livre para obedecer à espada de quem lhe der tal proteção.

Porém, associar Hobbes diretamente à causa monárquica é incorreto, visto que tanto no De Cive quanto no Leviathan ele insiste em usar o termo soberano civil em relação tanto à monarquia, quanto à aristocracia e à democracia, afirmando no Leviathan:

“A prosperidade de um povo governado por uma assembléia aristocrática ou democrática não vem nem da aristocracia nem da democracia, mas da obediência e concórdia dos súditos; assim como também o povo não floresce numa monarquia porque um homem tem o direito de governá-lo, mas porque ele lhe obedece. Retirem seja de que Estado for a obediência (e conseqüentemente a concórdia do povo) e ele não só não florescerá, como a curto prazo será dissolvido”. (Leviathan, cap. XXX, p. 202).

Da mesma forma, associá-lo diretamente ao absolutismo também é indevido. Os leitores parisienses de Hobbes viram, no Leviatã, “a defesa do regicídio” e “em 1683 a Igreja Anglicana manda queimar uma série de obras subversivas... O Leviatã está entre elas por defender, justamente, a submissão ao usurpador bem-sucedido”. (Renato Janine Ribeiro, “Introdução” ao De Cive, p. XXVII, nota 12).

Assim, ainda de acordo com Janine, no De Cive “é um realista quem fala”, ao passo que no Leviathan “será alguém que já se conformou à nova ordem”. Dessa forma, a obra de Hobbes é claramente vinculada à sua carreira e à sua vida. (Idem, p. XXVI, XXVII).
Porém, Janine ainda observa que Quentin Skinner desenvolveu “a tese de que o Leviathan é uma obra representativa da posição dos realistas conformados com a vitória de Cromwell..., de qualquer modo dispostos a serem súditos leais da República”. (Idem, p. XXVII)

Concluindo estas considerações, que se iniciaram em relação à afirmação de Hobbes de que os reis são deuses, cito o início do cap. XXXI do Leviathan, onde ele irá deduzir o caráter absoluto da soberania do estado de natureza e da necessidade de preservação da vida:

“Que a condição de simples natureza, isto é, de absoluta liberdade, como é a daqueles que não são nem súditos nem soberanos, é anarquia e condição de guerra; que os preceitos pelos quais os homens são levados a evitar tal condição, são as leis da natureza; que um Estado sem poder soberano não passa de uma palavra sem substância e não pode permanecer; que os súditos devem aos soberanos simples obediência em todas as coisas, de onde se segue que sua obediência não é incompatível com a lei de Deus, provei suficientemente naquilo que já escrevi”. (Leviathan, Cap. XXXI, p. 211).

sábado, 1 de agosto de 2009

Hobbes: Heresia, Paz Civil e Tolerância Religiosa

Hobbes: Heresia, Paz Civil e Tolerância Religiosa - Atualizado em 03-10-09
Ao meus amigos e irmãos da oikoumene cristã espalhada pelo mundo.
Isaar Soares de Carvalho

Hobbes afirma que a Igreja recebe do Estado a autoridade de uma congregação legítima para que atue com ordens, leis, aja, queira, pronuncie-se e seja obedecida. No Cap. XXXIX Leviathan ele cita o próprio texto do Evangelho que pressupõe que a Igreja é uma pessoa nesses termos, pois do contrário o que o fiel fizesse em seu seio seria apenas a ação de um particular não submisso a essa congregação e como tal ele não se submeteria a uma instituição não legitimada pelo soberano civil. Eis o texto que mostra a Igreja como uma pessoa jurídica, do qual Hobbes cita apenas o final (em itálico), suficiente para sua argumentação:
"Se teu irmão pecar [contra ti], vai argüi-lo entre ti e ele só. Se ele te ouvir, ganhaste a teu irmão. Se, porém, não te ouvir, toma ainda contigo uma ou duas pessoas, para que, pelo depoimento de duas ou três testemunhas, toda palavra se estabeleça. E, se ele não os atender, dize-o à igreja; e, se recusar ouvir também a igreja, considera-o como gentio e publicano”.

Hobbes relaciona a heresia com as rebeliões diante do poder civil, mas ressalva que a Igreja estende seu controle para as consciências dos homens, antecipando um dos significados do futuro termo “ideologia”:
“Podemos dizer que a heresia tem a mesma relação com o poder espiritual que a rebelião tem com o poder temporal, e é suscetível de ser perseguida por aquele que quer manter um poder espiritual e uma dominação sobre a consciência dos homens".

Ferdinand Tönnies observa que o livre pensamento era considerado na Inglaterra como “o pai da incredulidade” e que Hobbes era associado por seus críticos aos libertinos, ao ponto de se identificarem as alcunhas de libertino e hobbista.(Hobbes: vida y doctrina, p. 84).

Enquanto o clero era tão resistente ao livre pensamento, considerando-o como herético, ocultava suas próprias falhas, sendo benévolo com seus próprios vícios. De acordo com Tönnies: “Então o vício e o livre pensamento celebram uma classe de aliança que pode chamar mais a atenção que aquela outra, mais obscura, do vício e a beataria”. E de acordo com Janine, havia um tal perigo de corrupção do clero que era quase impossível que ele não se corrompesse.(Cf. Introdução a Do Cidadão).

A Igreja, porém, negava o próprio conceito de heresia ao censurar idéias divergentes de seus credos, pois a rigor alguém que não pertencesse ao rebanho não poderia ser considerado um herético. Veja-se, pois, como Santo Tomás definia a heresia: “A species of infidelity in men who, having professed the faith of Christ, corrupt its dogmas". (Catholic Encyclopedia, “Heresy”, www.newadvent.org/cathen).

Dificilmente se poderia afirmar que todos os filósofos que discordaram dos dogmas eram heréticos, partindo-se dessa definição do homem santo e sapiente que foi Tomás de Aquino.

O termo heresia era usado não só em relação à religião, mas também à Filosofia e à Política, conforme definição da mesma fonte católico-romana referida em nota acima: “The term heresy connotes, etymologically, both a choice and the thing chosen, the meaning being, however, narrowed to the selection of religious or political doctrines, adhesion to parties in Church or State”.

Na Grécia Antiga, a filosofia e a ciência inicialmente tinham teses que poderiam ser vistas como heresias. A máxima “o homem é a medida de todas as coisas” também era aplicada por Protágoras à questão da existência dos deuses. Ele demonstra seu ceticismo ao afirmar:
"Quando se trata dos deuses, sou incapaz de descobrir se existem ou não, e inclusive com que se parecem pela forma. Pois há muitas coisas que fecham o caminho deste conhecimento, a obscuridade do problema e a brevidade da vida humana”. (D. LAÉRCIO, Vidas, Opiniones y Sentencias de los Filósofos más Ilustres. Buenos Aires: El Ateneo, 1947, Parte IX, p. 51). Isso teria também implicações em relação à interpretação das leis: o fundamento das leis gerais da vida em sociedade deixa de ser um oráculo divino e passa a ser a própria natureza humana.

Sabemos que Sócrates é, teologicamente, um pensador que se opõe aos sofistas, apresentando a Filosofia como possibilidade de salvação da alma e de preparação para a morte, chegando a afirmar: "O homem que realmente consagrou sua vida à filosofia é senhor de legítima convicção no momento da morte, possui esperança de ir encontrar para si, no além, excelentes bens quando estiver morto” (Fedro, 64).

- Por que Sócrates não se irrita com a morte?, pergunta um de seus discípulos. E ele responde falando de sua convicção: "Depois dela vou me encontrar, primeiro, ao lado de outros deuses, sábios e bons; e segundo, junto a homens que já morreram e que valem mais do que os daqui”, referindo-se, sem dúvida, ao membros do tribunal de Atenas.

E ele posiciona-se, até o momento de sua morte, como um pregador da salvação pela Filosofia, quando afirma, no pouco tempo que lhe resta, antes de entrar para a imortalidade:“Hei de envidar todo o esforço possível para defender a esperança de ir encontrar, depois da morte, um lugar perto dos Deuses, que são amos em tudo excelentes” (Fedro, 63). E sua convicção é firme, como ele afirma: "Tenho a firme convicção de que depois da morte há qualquer coisa — qualquer coisa, de resto, que uma antiga tradição diz ser muito melhor para os bons do que para os maus” Fedro,63).

No entanto, foi esse mesmo Sócrates que, tendo um conteúdo soteriológico e escatológico em sua filosofia, foi condenado injustamente, podemos afirmar, comparativamente com o conceito de heresia católico, como herege, sob a acusação de não venerar os deuses da cidade. Enquanto Platão o considerava o homem mais justo a quem conheceu, e que antes de expirar ordenou: ‘Críton, devemos um galo a Asclépio; não te esqueças de pagar essa dívida”(Fédon, 118a), o tribunal da cidade o condenou à morte por "não venerar os deuses da cidade" e por "corromper a juventude". Mas isso foi feito pelo tribunal de uma cidade que tinha mais de 3000 deuses e que, metaforicamente, como disse Pausânias, tinha mais deuses do que cidadãos.

No mesmo local sagrado, pois o Areópago era um local dedicado a Marte, deus da guerra, e tinha um caráter sagrado por representar o poder civil exercendo também controle sobre as doutrinas religiosas, compareceu Paulo, na era cristã. Ali ele deveria responder a respeito da nova doutrina que ensinava, e ali o apóstolo falou do "Deus que fez o mundo e tudo o que nele há, em quem vivemos, nos movemos e existimos", lembrando-lhes que alguns dos poetas gregos disseram, como Arato, evidenciando a revelação natural, as "sementes do Lógos" nos gregos e encontrando aí uma sedimentação para anunciar-lhes o Evangelho.

O que é de se estranhar é que havia alguns filósofos, epicureus e estóicos, que constrangeram, isto é, obrigaram, com outros cidadãos, Paulo a ir ao Areópago. Ali ainda se decidia a quais deuses adorar. Porém, hoje podemmos pensar que uma cidade que tinha tantos deuses poderia ser tolerante. No entanto, ali ainda se exercia um controle de doutrinas religiosas, como se evidencia no texto de Atos 17. Assim, podemos afirmar que na Grécia já havia um conceito de heresia, tanto em relação à Filosofia quanto à Política e à Religião.

Heresia, dessa forma, desde os inícios da Filosofia e da Ciência na Grécia, foi um termo associado a interesses políticos e ideológicos, mas ela tem um valor essencial para a libertação das consciências da obscuridade e da ignorância das causas. Esse sentido é assim expresso em obra de 1989 de Stephen David Ross: "O que permanece como uma alternativa é dar as boas vindas à heresia como a condição que torna a razão possível"(Metaphysical aporia and philosophical heresy, p. 11, Google Books).

Nesse sentido, a alegoria da caverna tem um conteúdo sempre renovado, quando mostra o filósofo como aquele que faz uma outra escolha (airesis), a de viver sob a luz, e depois, quando ele volta para libertar as consciências dos que estão nas trevas, é condenado. Eis Platão mostrando a Atenas, através de um recurso didático milenar, a parábola, que Sócrates foi condenado injustamente. E podemos aplicar a Sócrates, mutatis mutandis, o que disse Affonso Romano de Sant´Anna sobre a heresia no século XVII: "Desta vez não é Galileu quem mente, mas o tribunal que o julga herege/mente". Troquemos Galileu por Sócrates. Eis aí a perseguição correndo séculos, e a heresia (escolha) da verdade sendo condenada nas relações de força através da História.

A seguir expomos alguns usos e significados do termo heresia, de acordo com a mesma obra católica citada acima:
“Josefo aplica o nome (airesis) a três seitas religiosas predominantes na Judéia desde o período dos Macabeus: os Saduceus, os Fariseus, os Essênios. S. Paulo é descrito pelo governador romano Félix como o líder da heresia (aireseos) dos Nazarenos. Os Judeus em Roma disseram ao mesmo apóstolo: ´A respeito desta seita (airesoeos), sabemos que em todo lugar se fala contra ela´(At 28:22).São Justino (Diálogo com Trypho 18) usa airesis no mesmo sentido.S. Pedro (II Carta 2:1) aplica o termo às seitas cristãs: ´Haverá entre vós mestres mentirosos que introduzirão seitas de perdição (aireseis apoleias)´. No Grego antigo, Escolas de Filosofia, assim como seitas religiosas, são ´heresias´”.

O termo “haeresis” é um substantivo feminino no Grego e tem os seguintes significados: “Act of taking, capture: e.g. storming a city; choosing, choice; that which is chosen; a body of men following their own tenets (sect or party): of the Sadducees, of the Pharisees,of the Christians; dissensions arising from diversity of opinions and aims”. (Cf. New Testament Greek Lexicon,www.crosswalk.com)

Esses significados são corroborados pela Encyclopaedia Britannica (1961),que assim define o termo HERESY:
"In it primary meaning signifies an act of choice, wether good or bad (cf. LXX in Gn 49:5; Lv 22:18, 21; Ne 12:40; I Mc 8:30); it is the English equivalent of the Greek airesis. From this arose its later meaning of personal choice of an opinion or belief, or personal adhesion to a group or party advocating certain principles of belief; from this again it was used of the group or party as such, as a school or ´sect´. In Eusebius (Hist. X.5) the Christian Church itself is described as the ´most sacred heresy´…"

Vejam que impressionante o final dessa definição. É uma citação de Eusébio, afirmando que a Igreja Cristã é "a mais sagrada heresia". No sentido de ser a melhor escolha.

O termo heresia aparece nove vezes no Novo Testamento, duas quais já citadas acima, conforme se segue:

1 - At 5:17: “Levantando-se, porém, o sumo sacerdote e todos os que estavam com ele, isto é, a seita dos saduceus...”. O texto, escrito por um grego cristão, Lucas, identifica o sumo sacerdote e o grupo dos saduceus como seita. O termo não denota rebelião ou desvio da fé cristã, mas uma divergência e oposição doutrinária.

2 -At 15:5: “Insurgiram-se, entretanto, alguns da seita dos fariseus que haviam crido...”. Esses fariseus aqui citados afirmavam que os gentios que haviam crido deviam passar pela circuncisão e cumprir a lei de Moisés. Os apóstolos, porém recomendaram aos gentios que se abstivessem “das coisas sacrificadas a ídolos, bem como do sangue, da carne de animais sufocados e das relações sexuais ilícitas” (At 15:29). A oposição dos judaizantes foi constante e o termo seita indica um grupo conservador e perseguidor dos pregadores.

3 - At 24:5: “Tendo nós verificado que este homem é uma peste e promove sedições entre os judeus esparsos por todo o mundo, sendo também o principal agitador da seita dos nazarenos...”. Nesse caso é a pregação de Jesus, feita por Paulo, que é chamada de seita, e isso é feito, de acordo com o texto, pelo sumo sacerdote Ananias, por alguns anciãos e por seu porta-voz, um orador chamado Tértulo (Cf. At 24: 1-2). Inverte-se, portanto, a aplicação do termo. Enquanto Lucas o aplicava ao sumo sacerdote, aos fariseus e saduceus, agora é o sumo sacerdote e os anciãos que o aplicam aos seguidores de Jesus de Nazaré.

4 - At 24:14: “Segundo o Caminho, a que chamam seita, assim eu sirvo ao Deus de nossos pais...”. Nessa argumentação, Paulo diferencia o caminho, que é Cristo, de uma mera seita, afirmando que serve ao Deus dos pais e que mantém sua fé na Lei e nos profetas, os quais apontavam para o caminho. Poderia ser aduzido daí que a seita estava do outro lado, pois eles perseguiam os do caminho, como ele próprio fizera, conforme Atos 9:2, que afirma que ele “pediu cartas para as sinagogas de Damasco, a fim de que, caso achasse alguns que eram do Caminho, assim homens como mulheres, os levasse presos para Jerusalém”. Eis agora Paulo no caminho, sendo considerado por seus perseguidores, como membro de uma seita. Aí já se adianta aquela contradição que Rubem Alves apontará em relação à Inquisição na Idade Média: a heresia da verdade e a verdade da heresia, e que isto é, a verdade está atrelada ao domínio, com tão bem denunciará Hobbes em relação às pretensões e ao poder de fato do Papado.

5 - At 26:5: “Vivi fariseu conforme a seita mais severa da nossa religião”.
Paulo usa o termo falando de uma interpretação radical do judaísmo, claramente de forma crítica, pois por ser assim tão rigoroso ele afirmou que no passado, antes de sua conversão, baseado nessa visão da religião, perseguiu os do Caminho, como ele mesmo disse: “Na verdade, a mim me parecia que muitas coisas devia eu praticar contra o nome de Jesus, o Nazareno; e assim procedi em Jerusalém. Havendo eu recebido autorização dos principais sacerdotes, encerrei muitos dos santos nas prisões; contra estes dava o meu voto, quando os matavam. Muitas vezes, os castiguei por todas as sinagogas, obrigando-os até a blasfemar. E, demasiadamente enfurecido contra eles, mesmo por cidades estranhas os perseguia. Com estes intuitos, parti para Damasco, levando autorização dos principais sacerdotes e por eles comissionado”.(At 26:9-12).

6 - At 28:22: “Gostaríamos de ouvir o que pensas ; porque, na verdade, a respeito desta seita sabemos que em todo lugar se fala contra ela”. Esta afirmação democrática foi feita pelos principais dos judeus que habitavam em Roma, diante de Paulo, a quem este anunciou o Evangelho, e “lhes fez uma exposição em testemunho do reino de Deus, procurando persuadi-los a respeito de Jesus, tanto pela lei de Moisés como pelos profetas. Houve alguns que ficaram persuadidos pelo que ele dizia; outros, porém, continuaram incrédulos”. (At 28:23-24).

7 - I Co 11:19: “Até mesmo importa que haja heresias (divisões) entre vós, para que os que são aprovados tornem-se manifestos em vosso meio”.

8 - Gl 5:19-20: “As obras da carne são conhecidas e são: discórdias, dissensões, facções (heresias)”. Em ambos esses textos Paulo se dirige às comunidades cristãs procurando a unidade da fé e a união fraterna. No caso dos coríntios, mesmo nas reuniões da eucaristia eles mostravam dissensões entre si. Era um absurdo que, partindo o pão na mesa do Senhor, eles não tivessem comunhão entre si. Quanto aos gálatas, muitos dentre eles pretendiam seguir os costumes da lei de Moisés, anulando assim a graça de Deus, revelada em Cristo, e provocando facções e divisões na comunidade, isto é, “heresias”.

9 - II Pd 2:1: “Assim como, no meio do povo, surgiram falsos profetas, assim também haverá entre vós falsos mestres, os quais introduzirão,dissimuladamente, heresias destruidoras”. O texto é de caráter pastoral, próprio do príncipe dos apóstolos, prevenindo seu rebanho contra os falsos doutores, tais como lobos devoradores no meio das ovelhas.

Posteriormente, na Igreja institucionalizada os considerados heréticos poderiam ser julgados, levados a se retratar, perseguidos, excomungados e muitos foram cruelmente mortos. Isso levava o fiel a crer que, se ele morresse na condição de excomungado, estaria em situação de danação futura. O Papa supostamente poderia condenar ao inferno tanto o corpo quanto a alma, isto é, seu poder era superior ao do rei, que podia apenas matar o corpo, e nada decidir quanto ao destino da alma. Sendo assim, para a comunidade cristã controlada pelo Papa, o poder de excomunhão amedrontava mais que o poder civil e a obediência à Igreja provocaria a desobediência poderia levar á sociedade à própria guerra civil.

O objetivo de Hobbes ao discutir as opiniões dos teólogos não era apenas opor-se às doutrinas sem fundamento da Igreja, mas sim a obediência e a paz civil, como ele diz no Prefácio do De Cive, onde, ao expor as regras a seguir em seu discurso, a quarta é: “Não discutir de forma alguma as teses dos teólogos, exceto aquelas que despem os súditos de sua obediência e assim abalam os alicerces do governo civil”.

Para ele, portanto, a heresia dizia respeito às opiniões e crenças contrárias à paz civil, e a Igreja, dessa forma, seria herética do ponto de vista civil. Para ele, as opiniões, mesmo que verdadeiras, estavam sob o controle do soberano, pois seu objetivo é a paz civil. E assim, quem determina o que é verdadeiro é o soberano, não o clero, o qual lhe é submisso, conforme já examinamos em outra parte.

Ele é tão radical em relação ao controle exercido pela Igreja sobre a consciência dos cidadãos que chegou a afirmar que Jesus não ensinou Lógica: sobre o juízo a respeito de uma inferência em assunto no qual há controvérsia, sendo esta contrária à paz comum, Hobbes afirma que “é necessário que haja alguém para julgar o raciocínio”, porém, observa que “não há regras dadas por Cristo para este propósito –ele não veio ao mundo para ensinar lógica”. Donde se segue que é o soberano civil quem tem o poder de decidir quem será o juiz das controvérsias e mesmo quem poderá por fim a elas, visando o bem público e a paz civil.

E para surpresa da Igreja, o resumo das leis de natureza é tirado do Evangelho, pois Hobbes cita o seguinte conceito presente no Evangelho de Lucas, mas sem fazer a referência, tomando-o como um princípio da razão natural. “Fazer aos outros o que queremos que nos façam”, de acordo com ele, é o resumo das leis de natureza: “As leis de natureza (como a justiça, a eqüidade, a modéstia, a piedade), ou, em resumo, fazer aos outros o que queremos que nos façam”.

Se por esse princípio do amor ao próximo se alcança a paz civil, pelo outro, isto é, amar a Deus de todo o coração, de todas as forças e de todo o entendimento, se alcança a tolerância religiosa, e para isso Hobbes deu grande contribuição.