segunda-feira, 4 de agosto de 2008

"O meu reino não é deste mundo"

“O meu Reino não é este mundo”

No Prefácio do De Cive, encontra-se o plano de trabalho de Hobbes, tanto do ponto de vista teórico quanto em relação à moral. Eis a sua divisa:

“Neste livro, verás sucintamente descritos os deveres dos
homens, primeiro enquanto homens, depois enquanto súditos, e finalmente na qualidade de cristãos” (p. 11).
Por essa síntese verifica-se que ele parte dos direitos de natureza, os quais devem ser preservados pelo Estado. Enquanto criaturas de Deus, no entanto, conforme as Escrituras o seu fim é a vida eterna. A doutrina cristã deve ser reconhecida pelo Estado, mas se este ordenar algo contrário à salvação, poderá ser desobedecido sem injustiça.
Em sua dialética, ao mesmo tempo em que a afirma a existência de um deus mortal, deduzido da razão natural e construído artificialmente pelo homem, Hobbes submete as idéias a respeito do Deus imortal a esse grande homem. Na realidade, como o Estado é deduzido por natureza, Hobbes, reduzindo a religião ao não demonstrável, submete-a à autoridade civil, a qual, em lugar de ser mortal, assume um caráter sagrado. Assim, o que é sagrado é o próprio Estado.
Para Hobbes a fé é uma questão particular e o Estado não tem um credo específico. Não é porque um rei se converte que todo o Estado será cristão.
Nesse aspecto, Leo Strauss afirma que Hobbes parte das Escrituras para justificar a autoridade civil, mas ao fim as nega. O próprio Hobbes reduz a religião a uma instituição que para ser reconhecida juridicamente, está submissa ao Estado, o que aparece, tanto no De Cive quanto no Leviathan, em sua definição da palavra “Igreja”. Esta só terá legitimidade enquanto pessoa se for reconhecida pelo Estado e o homem não lhe estará sujeito a não ser como fiel, não enquanto cidadão.
Patricia Springborg está de acordo com Strauss. No texto Hobbes on Religion ela afirma que suas obras Historia Eclesiástica (publicada em 1688) e An Historical Narration Concerning Heresy and the Punishment Thereof (publicada em 1680) têm sido ignoradas no estudo do pensamento religioso do fil[osofo. Em relação à heresia, afirma que Hobbes se refere a uma definição da mesma na Grécia Antiga, o que faz para proteger-se de ser acusado como tal e que, quando Hobbes afirma que a autoridade da Escrituras procede da pessoa soberana, anula essa autoridade.
No decorrrer da História observa-se que, enquanto na Igreja Primitiva se fazia um grande esforço diante da religião oficial judaica e do Estado persecutório, na Idade Moderna, devido ao domínio da Igreja sobre a cultura e a política, houve uma longa luta da filosofia e da ciência diante da instituição eclesiástica, que era tão secular quanto outras, mas com o trunfo de ser representante de Deus na terra, sobrepondo-se, em nome dessa ideologia, ao estado, à filosofia, à ciência e à liberdade moral. A Igreja, que no início não tinha expressão política, com o passar dos séculos tornou-se controladora das consciências. Chegou-se à situação dialética em que o Estado, de seu perseguidor, precisava libertar-se dela.
Hobbes teve um importante papel na elaboração de uma teoria que demonstrasse que sem o Estado não é possível existir a própria sociedade civil. Logo, a legitimação da religião também provém do próprio soberano. Não ao contrário, conforme já vimos ao citar o cap. XII, sobre as vantagens do poder eclesiástico ao “reconhecer” um soberano. Mas Hobbes não está tratando, em sua obra, primeiramente, da religião cristã, mas da soberania e, por conseqüência, da religião enquanto instituição que pretendia ser um Estado dentro do Estado, o que seria uma contradição lógica e ontológica.[1]
É impressionante a tarefa de Hobbes, diante de uma cultura influenciada pela leitura da Bíblia: demonstrar que a paz é alcançada através da filosofia civil ou moral, não da instituição eclesiástica, que se dizia a guardiã das Sagradas Escrituras, justamente destas, que afirmam, na interpretação que Cristo é o Príncipe da Paz, e que seu Reino não é deste mundo.
Hobbes já questiona a própria noção de cânon, afirmando que os livros considerados canônicos eram aqueles que a Igreja Anglicana, isto é, a Igreja submissa ao Estado, assim o decidisse. Acima do Papa estava o Soberano, portanto. Nada mais lógico, pois a instituição que garante a paz civil é o Estado, o que seria uma redundância, pois ele resgata o sentido de Civitas (Estado) tanto no De Cive quanto no Leviathan, mas era necessário afirmar isso em seu contexto.
Hobbes afirma que a discórdia em seu contexto era provocada pela falta de ciência dos teólogos, sendo a finalidade da filosofia moral o alcance da paz civil. Ele estabelece um contraste entre o mundo da discórdia das doutrinas da teologia e o mundo da paz da geometria, isto é, o modelo da filosofia civil e, por conseqüência, da paz, não era a disputa teológica, mas a filosofia moral, que levaria à conclusão de que sem a obediência a um poder comum, que colocasse a todos os homens em respeito, estes não tirariam prazer algum do convívio social, pois continuariam no estado de natureza, como afirma o filósofo no célebre cap. XIII do Leviathan.
Então, por que chamar a esse Estado de “eclesiástico”?
Aparentemente é um Estado laico absoluto. Porém A. P. Martinich discorda disso, afirmando que em Hobbes há uma tentativa de conciliação entre a visão da ciência moderna e a visão cristã predominante sobre Estado.[2] Este, de acordo com Hobbes, subsume em i todas as instituições, principalmente a instituição eclesiástica, chegando mesmo a decidir sobre que é canônico ou não, bem como sobre as doutrinas a serem ensinadas, visando a paz, e assim, nada que se opõe à paz civil deve ser ensinado. Ainda que as doutrinas sejam verdadeiras, nada impedirá que sejam controladas, tendo em vista a paz.
Hobbes possivelmente chame a esse estado de “eclesiástico” retoricamente, isto é, como estratégia discursiva, pois em seu tempo as mentalidades ainda eram marcadas pela visão religiosa cristã do mundo. Porém, com o passar dos anos, essa visão de mundo seria secularizada na mentalidade européia, e os empiristas ingleses estão na base de uma visão laica do mundo que posteriormente serviu de base ao iluminismo francês, a seu agnosticismo e anticlericalismo.
Por que ele usa o termo “Estado Eclesiástico”? - Esse Estado é eclesiástico por que subsume os credos e os autoriza? Se for assim, ele continua, no entanto, pela natureza de sua própria definição, civil (civitas), não eclesiástico.
Ora, parece-nos que Chamar a um Estado de civil seria uma definição impossível para Hobbes, que prezava acima de tudo as boas definições, evitando não só os absurdos das Escolas, mas também uma tautologia dessas.
Dessa forma, “eclesiástico” poderia ser uma ironia, pois o Estado só pode ser, com o perdão do pleonasmo, civil. Esse Estado não é eclesiástico, pois por definição os termos se Estado e eclesiástico se excluem.
A Ecclesia não é um Estado no sentido teológico e o estado é leigo, pois é derivado, de acordo com o filósofo, da razão natural, não da revelação e nem da missão de nosso abençoado Salvador, que se constitui na regeneração do homem. E como bem diz Hobbes no Leviathan:

“… O poder eclesiástico foi transmitido aos apóstolos por nosso Salvador, e... eles foram (a fim de melhor poderem exercer esse poder), imbuídos do Espírito Santo...
Mas toda a disputa seria em vão, se se verificasse que não lhes foi deixado por nosso Salvador qualquer espécie de poder coercitivo, mas apenas o poder de proclamar o Reino de Cristo e de persuadir os homens a submeterem-se-lhe, e através de preceitos e bons conselhos ensinarem aos que se submeteram o que devem fazer para serem recebidos no Reino de Deus quando ele chegar, e que os apóstolos e outros ministros do Evangelho são apenas nossos professores e não nossos comandantes, e que seus preceitos não são leis, mas apenas salutares conselhos”. (Leviathan, Cap. XLII, p. 293). [3]


Ao falar de “disputa”, acima, Hobbes refere-se à discussão do Cardeal Belarmino sobre a natureza do poder papal: se este seria monárquico, aristocrático ou democrático. Porém, o santo homem, de acordo com o filósofo, parecia ignorar que “todas estas espécies de poder são soberanas e coercitivas”.[4]

Notas:
[1] Em Hobbes é aplicável a tese de P. Ricoeur de que “a ideologia é o alto preço que pagamos pela coesão social”, desenvolvida em sua obra Interpretação e Ideologias, da qual fiz uma exposição na Dissertação de Mestrado em Filosofia, Unicamp, IFCH, 1998.

[2] A. P. Martinich, in: Hobbes, obra disponível parcialmente na books.google.
[3] Os Pensadores, p 293. No original: “… The power ecclesiastical was left by our Saviour to the Apostles; and how they were (to the end they might the better exercise that power) endued with the Holy Spirit…
… There is no coercive power left them by our Saviour, but only a power to proclaim the kingdom of Christ, and to persuade men to submit themselves there unto; and, by precepts and good counsel, to teach them that have submitted what they are to do, that they may be received into the kingdom of God when it comes; and that the Apostles, and other ministers of the Gospel, are our schoolmasters, and not our commanders, and their precepts not laws, but wholesome counsels; then were all that dispute in vain”.
[4] O termo “cardeal”, usado como título honorífico e hierárquico na Igreja, é definido no Le Robert como “capital, essencial, fundamental”. É usado em Matemática e em Geografia (os quatro pontos cardeais) e sendo associado ao termo “Sacro Colégio”, é de uma presunção política impressionante. (Cf. Micro Robert. Dictionnaire Du Français Primordial. Paris: 1984).