quinta-feira, 25 de setembro de 2008

O CRITICISMO LITERÁRIO DE HOBBES

“O criticismo literário de Hobbes” [1]

Sobre a Bíblia, antes de qualquer consideração, é necessário observar que Hobbes é um homem de Ciência e, portanto, deduz a verdade da razão, dos sentidos e da experiência, considerando a razão natural um sinônimo da “palavra indubitável de Deus”, como ele afirma: “Não convém renunciar aos sentidos e à experiência, nem àquilo que é a palavra indubitável de Deus, nossa razão natural”. (Lev., XXXII, p. 221)
Seu criticismo literário está presente em sua contribuição para investigação da história da formação dos textos bíblicos. Em relação à data de redação dos textos, Hobbes enfatiza em primeiro lugar a afirmação de Gn 12:6:

“Atravessou Abrão a terra até Siquém, até o carvalho de Moré. Nesse tempo os cananeus habitavam essa terra”.

O que a tradução que ele usava,a King James, de 1611, assim dizia:

“And Abram passed through the land unto the place of Sichem, unto the plain of Moreh. And the Canaanite was then in the land”.[2]

De acordo com Martinich, Hobbes insiste no fato de que a afirmação de que os cananeus habitavam a terra era uma evidência da redação do texto “long time after the facts”.
Ainda sobre o Pentateuco, Hobbes afirma que Moisés "escreveu tudo o que aí se diz que escreveu”, isto é, aquelas afirmações do texto que dizem claramente que o patriarca escreveu são por Hobbes consideradas fidedignas. Eis os textos em que essas expressões aparecem:
Êx 17:14: “Então disse o Senhor a Moisés: Escreve isto para memória num livro, e repete-o a Josué...”.
Êx 24:3s: “Veio, pois, Moisés, e referiu ao povo todas as palavras do Senhor e todos os seus estatutos... Moisés escreveu todas as palavras do Senhor...”
Êx 34:28: “E escreveu nas tábuas as palavras da aliança, as dez palavras”. Essa narrativa se inicia com a afirmação de que teria sido Deus quem escrevera as segundas tábuas, porém conclui afirmando que foi Moisés quem o fez. E no texto tardio de Dt 10:4, afirma-se: “... Escreveu o Senhor nas tábuas...”. Os intérpretes atuais certamente teriam muito a discutir sobre isso, mas Hobbes diria, pela razão natural, que de fato foi Moisés quem escreveu.
Nm 33:2: “Escreveu Moisés as suas saídas, caminhada após caminhada...”
Dt 31:9: “Esta lei escreveu-a Moisés e a deu aos sacerdotes...”. Esse trecho confirma a tese de Hobbes sobre o reino sacerdotal de Israel, desenvolvida no De Cive de forma suficientemente sustentada.
Dt 31:22: “Moisés naquele mesmo dia escreveu este cântico”.
Dt 31:24: “Tendo Moisés acabado de escrever integralmente as palavras (ou: todas as palavras) desta lei num livro...”
Observe-se que em Josué também se encontra uma afirmação que mostra a interação e a continuidade entre o Pentateuco e este livro, bem como a amplitude do conceito de Livros da Lei, quando o texto diz: "Josué escreveu estas palavras no livro da lei de Deus". Sendo assim, Hobbes teria mais um argumento para corroborar sua tese de que Moisés não escreveu todo o Pentateuco, termo aplicável, certamente, não só aos cinco primeiros livros do Cânon, os quais não são, a rigor, necessariamente, os primeiros cronologicamente.
E ainda a respeito da data de redação dos textos bíblicos, Hobbes cita passagens dos Livros de Juízes e Rute que demonstram que os mesmos foram escritos muito tempo depois dos fatos narrados. Em relação ao Livro de Juízes, destacam-se os seguintes trechos que o confirmam:
Jz 1:21: “Os jebuseus habitam com os filhos de Benjamim em Jerusalém até ao dia de hoje”.
Jz 1,26: “E edificou uma cidade, e lhe chamou Luz; este é o seu nome até ao dia de hoje”
Jz 6:24: “Ainda até ao dia de hoje está o altar em Ofra".
Jz 10:4: “E tinham trinta cidades... até ao dia de hoje, as quais estão na terra de Gileade”.
Jz 15:19: “Daí chamar-se aquele lugar Em-hacoré até ao dia de hoje”.
Jz 17:6: “Naqueles dias não havia rei em Israel: cada qual fazia o que achava mais reto”. Afirmação que, ao mesmo tempo que confirma sua redação posterior, serviria como referência a Hobbes para justificar a necessidade do soberano civil diante do estado de natureza, no qual, não havendo lei, não havia injustiça, e de fato, cada um poderia fazer o que melhor lhe parecesse, conforme o célebre Cap. XIII do Leviathan.
Hobbes enfatiza a seguinte afirmação de Juízes 18:30 para confirmar sua tese de que o texto é posterior ao cativeiro babilônico:

“Os filhos de Dã levantaram para si aquela imagem de escultura; e Jônatas, filho de Gerson, o filho de Manassés, ele e seus filhos foram sacerdotes da tribo dos danitas, até ao dia do cativeiro do povo”.

Esse trecho assim aparece na King James Version, e para Hobbes era relevante que essa era a tradução autorizada pelo soberano civil da Inglaterra:

“And the children of Dan set up the graven image: and Jonathan, the son of Gershom, the son of Manasseh, he and his sons were priests to the tribe of Dan until the day of the captivity of the land”.

Quanto ao Livro de Rute, é claro o caráter posterior da redação em relação aos fatos narrados logo em sua abertura, que afirma: “No tempo em que julgavam os juízes” (1:1).

A rigor, os Livros de Josué, Juízes e Rute integram uma narrativa sobre um período que tem ligações claras. O início de Juízes refere-se à morte de Josué e demonstra que Israel então se encontrava sem uma liderança definida, havendo mesmo a necessidade de se fazer uma consulta ao Senhor para saber quem subiria a lutar contra os cananeus (Jz 1:1).

Sobre as fontes utilizadas pelos autores das Escrituras, Hobbes observa que o próprio texto menciona várias delas, tais como: o Livro das Guerras do Senhor, mencionado em Nm 21:14; o Livro dos Justos, citado em Js 10:13 e em II Sm 1:18; o Livro das Crônicas de Natan e o Livro das Crônicas de Gade, citados em I Cr 29:29.

E os escritores também se serviram de outras fontes, citadas nos dois Livros de Reis e nos dois de Crônicas, com expressões como: “Quanto aos mais atos de Salomão, a tudo quanto fez, e à sua sabedoria, porventura não está escrito no Livro da história de Salomão?” (I Rs 11:41) e outros semelhantes, como em I Rs 14:19, que cita o Livro da História dos reis de Israel e em I Rs 14: 29, onde o autor se refere ao Livro da História dos reis de Judá. [3]
Os escritores também se serviam de cartas, como as mencionadas em II Sm 11, I Rs 21:11, e muitas outras, mencionadas tanto nos livros históricos quanto nos proféticos, bem como de documentos reais e da tradição oral.
Hobbes tinha conhecimento de que “Ezequiel, Daniel, Ageu e Zacarias profetizaram no cativeiro” e afirma que “todas as escrituras do Antigo testamento foram postas na forma que possuem após o regresso dos judeus do cativeiro em babilônia, e antes do tempo de Ptolomeu Filadelfo” (Leviathan, Cap., XXXIII, p. 228s). [4]
Hobbes reconhece, como o recomendava a Igreja Anglicana, que os livros apócrifos são “proveitosos para nossa instrução” e que, se em relação à forma final do Antigo Testamento eles merecem crédito, “as Escrituras foram postas na forma que as conhecemos por Esdras”. [5] Pelo que aqui dissemos de forma introdutória sobre o criticismo literário de Hobbes, portanto, o Tratado Teológico-Político de Espinosa não é, como pretendem alguns, a primeira obra a examinar a história da formação dos textos bíblicos. Hobbes publica o Leviathan em 1651, enquanto Espinosa publica o Tratado em 1670, o que não se deve esquecer.

[1] Essa expressão é tomada de empréstimo a A. P. Martinich, usada em seu A Hobbes Dictionary, p. 50 e seguintes. Ver também Leviathan, Caps. 32, 33 e outras observações de Hobbes na mesma obra sobre a história dos textos bíblicos.
[2] The Authorized King James Version (KJV) of 1611: http://www.jesus-is-lord.com/thebible.htm.
[3] Outras referências sobre o Livro da história dos reis de Israel: I Rs 15: 31, 16:5, 14 e 20; 22:39; II Rs 1:18; 10:34; 13:8 e 12; 14:15 e 28; 15:11 e 15 etc. E sobre o Livro da história dos reis de Judá: 15: 7 e 23; I Rs 22: 46; II Rs 8:23; 12:19; 14:18; 15:6 etc
[4] Ver detalhes em Leviathan, Cap. XXXIII, p. 228ss. Quanto ao Livro de Daniel, posteriormente a crítica bíblica demonstrou que parte de seu conteúdo é de caráter apocalíptico, mas de fato o livro descreve o sítio de Jerusalém por Nabucodonosor e fatos ocorridos na Babilônia durante o cativeiro que se seguiu.
[5] Nesse ponto ele cita II Ed 14: 21 e 22. Não só aí ele se serve de textos considerados apócrifos pelo Protestantismo, mas também no De Cive.

segunda-feira, 4 de agosto de 2008

"O meu reino não é deste mundo"

“O meu Reino não é este mundo”

No Prefácio do De Cive, encontra-se o plano de trabalho de Hobbes, tanto do ponto de vista teórico quanto em relação à moral. Eis a sua divisa:

“Neste livro, verás sucintamente descritos os deveres dos
homens, primeiro enquanto homens, depois enquanto súditos, e finalmente na qualidade de cristãos” (p. 11).
Por essa síntese verifica-se que ele parte dos direitos de natureza, os quais devem ser preservados pelo Estado. Enquanto criaturas de Deus, no entanto, conforme as Escrituras o seu fim é a vida eterna. A doutrina cristã deve ser reconhecida pelo Estado, mas se este ordenar algo contrário à salvação, poderá ser desobedecido sem injustiça.
Em sua dialética, ao mesmo tempo em que a afirma a existência de um deus mortal, deduzido da razão natural e construído artificialmente pelo homem, Hobbes submete as idéias a respeito do Deus imortal a esse grande homem. Na realidade, como o Estado é deduzido por natureza, Hobbes, reduzindo a religião ao não demonstrável, submete-a à autoridade civil, a qual, em lugar de ser mortal, assume um caráter sagrado. Assim, o que é sagrado é o próprio Estado.
Para Hobbes a fé é uma questão particular e o Estado não tem um credo específico. Não é porque um rei se converte que todo o Estado será cristão.
Nesse aspecto, Leo Strauss afirma que Hobbes parte das Escrituras para justificar a autoridade civil, mas ao fim as nega. O próprio Hobbes reduz a religião a uma instituição que para ser reconhecida juridicamente, está submissa ao Estado, o que aparece, tanto no De Cive quanto no Leviathan, em sua definição da palavra “Igreja”. Esta só terá legitimidade enquanto pessoa se for reconhecida pelo Estado e o homem não lhe estará sujeito a não ser como fiel, não enquanto cidadão.
Patricia Springborg está de acordo com Strauss. No texto Hobbes on Religion ela afirma que suas obras Historia Eclesiástica (publicada em 1688) e An Historical Narration Concerning Heresy and the Punishment Thereof (publicada em 1680) têm sido ignoradas no estudo do pensamento religioso do fil[osofo. Em relação à heresia, afirma que Hobbes se refere a uma definição da mesma na Grécia Antiga, o que faz para proteger-se de ser acusado como tal e que, quando Hobbes afirma que a autoridade da Escrituras procede da pessoa soberana, anula essa autoridade.
No decorrrer da História observa-se que, enquanto na Igreja Primitiva se fazia um grande esforço diante da religião oficial judaica e do Estado persecutório, na Idade Moderna, devido ao domínio da Igreja sobre a cultura e a política, houve uma longa luta da filosofia e da ciência diante da instituição eclesiástica, que era tão secular quanto outras, mas com o trunfo de ser representante de Deus na terra, sobrepondo-se, em nome dessa ideologia, ao estado, à filosofia, à ciência e à liberdade moral. A Igreja, que no início não tinha expressão política, com o passar dos séculos tornou-se controladora das consciências. Chegou-se à situação dialética em que o Estado, de seu perseguidor, precisava libertar-se dela.
Hobbes teve um importante papel na elaboração de uma teoria que demonstrasse que sem o Estado não é possível existir a própria sociedade civil. Logo, a legitimação da religião também provém do próprio soberano. Não ao contrário, conforme já vimos ao citar o cap. XII, sobre as vantagens do poder eclesiástico ao “reconhecer” um soberano. Mas Hobbes não está tratando, em sua obra, primeiramente, da religião cristã, mas da soberania e, por conseqüência, da religião enquanto instituição que pretendia ser um Estado dentro do Estado, o que seria uma contradição lógica e ontológica.[1]
É impressionante a tarefa de Hobbes, diante de uma cultura influenciada pela leitura da Bíblia: demonstrar que a paz é alcançada através da filosofia civil ou moral, não da instituição eclesiástica, que se dizia a guardiã das Sagradas Escrituras, justamente destas, que afirmam, na interpretação que Cristo é o Príncipe da Paz, e que seu Reino não é deste mundo.
Hobbes já questiona a própria noção de cânon, afirmando que os livros considerados canônicos eram aqueles que a Igreja Anglicana, isto é, a Igreja submissa ao Estado, assim o decidisse. Acima do Papa estava o Soberano, portanto. Nada mais lógico, pois a instituição que garante a paz civil é o Estado, o que seria uma redundância, pois ele resgata o sentido de Civitas (Estado) tanto no De Cive quanto no Leviathan, mas era necessário afirmar isso em seu contexto.
Hobbes afirma que a discórdia em seu contexto era provocada pela falta de ciência dos teólogos, sendo a finalidade da filosofia moral o alcance da paz civil. Ele estabelece um contraste entre o mundo da discórdia das doutrinas da teologia e o mundo da paz da geometria, isto é, o modelo da filosofia civil e, por conseqüência, da paz, não era a disputa teológica, mas a filosofia moral, que levaria à conclusão de que sem a obediência a um poder comum, que colocasse a todos os homens em respeito, estes não tirariam prazer algum do convívio social, pois continuariam no estado de natureza, como afirma o filósofo no célebre cap. XIII do Leviathan.
Então, por que chamar a esse Estado de “eclesiástico”?
Aparentemente é um Estado laico absoluto. Porém A. P. Martinich discorda disso, afirmando que em Hobbes há uma tentativa de conciliação entre a visão da ciência moderna e a visão cristã predominante sobre Estado.[2] Este, de acordo com Hobbes, subsume em i todas as instituições, principalmente a instituição eclesiástica, chegando mesmo a decidir sobre que é canônico ou não, bem como sobre as doutrinas a serem ensinadas, visando a paz, e assim, nada que se opõe à paz civil deve ser ensinado. Ainda que as doutrinas sejam verdadeiras, nada impedirá que sejam controladas, tendo em vista a paz.
Hobbes possivelmente chame a esse estado de “eclesiástico” retoricamente, isto é, como estratégia discursiva, pois em seu tempo as mentalidades ainda eram marcadas pela visão religiosa cristã do mundo. Porém, com o passar dos anos, essa visão de mundo seria secularizada na mentalidade européia, e os empiristas ingleses estão na base de uma visão laica do mundo que posteriormente serviu de base ao iluminismo francês, a seu agnosticismo e anticlericalismo.
Por que ele usa o termo “Estado Eclesiástico”? - Esse Estado é eclesiástico por que subsume os credos e os autoriza? Se for assim, ele continua, no entanto, pela natureza de sua própria definição, civil (civitas), não eclesiástico.
Ora, parece-nos que Chamar a um Estado de civil seria uma definição impossível para Hobbes, que prezava acima de tudo as boas definições, evitando não só os absurdos das Escolas, mas também uma tautologia dessas.
Dessa forma, “eclesiástico” poderia ser uma ironia, pois o Estado só pode ser, com o perdão do pleonasmo, civil. Esse Estado não é eclesiástico, pois por definição os termos se Estado e eclesiástico se excluem.
A Ecclesia não é um Estado no sentido teológico e o estado é leigo, pois é derivado, de acordo com o filósofo, da razão natural, não da revelação e nem da missão de nosso abençoado Salvador, que se constitui na regeneração do homem. E como bem diz Hobbes no Leviathan:

“… O poder eclesiástico foi transmitido aos apóstolos por nosso Salvador, e... eles foram (a fim de melhor poderem exercer esse poder), imbuídos do Espírito Santo...
Mas toda a disputa seria em vão, se se verificasse que não lhes foi deixado por nosso Salvador qualquer espécie de poder coercitivo, mas apenas o poder de proclamar o Reino de Cristo e de persuadir os homens a submeterem-se-lhe, e através de preceitos e bons conselhos ensinarem aos que se submeteram o que devem fazer para serem recebidos no Reino de Deus quando ele chegar, e que os apóstolos e outros ministros do Evangelho são apenas nossos professores e não nossos comandantes, e que seus preceitos não são leis, mas apenas salutares conselhos”. (Leviathan, Cap. XLII, p. 293). [3]


Ao falar de “disputa”, acima, Hobbes refere-se à discussão do Cardeal Belarmino sobre a natureza do poder papal: se este seria monárquico, aristocrático ou democrático. Porém, o santo homem, de acordo com o filósofo, parecia ignorar que “todas estas espécies de poder são soberanas e coercitivas”.[4]

Notas:
[1] Em Hobbes é aplicável a tese de P. Ricoeur de que “a ideologia é o alto preço que pagamos pela coesão social”, desenvolvida em sua obra Interpretação e Ideologias, da qual fiz uma exposição na Dissertação de Mestrado em Filosofia, Unicamp, IFCH, 1998.

[2] A. P. Martinich, in: Hobbes, obra disponível parcialmente na books.google.
[3] Os Pensadores, p 293. No original: “… The power ecclesiastical was left by our Saviour to the Apostles; and how they were (to the end they might the better exercise that power) endued with the Holy Spirit…
… There is no coercive power left them by our Saviour, but only a power to proclaim the kingdom of Christ, and to persuade men to submit themselves there unto; and, by precepts and good counsel, to teach them that have submitted what they are to do, that they may be received into the kingdom of God when it comes; and that the Apostles, and other ministers of the Gospel, are our schoolmasters, and not our commanders, and their precepts not laws, but wholesome counsels; then were all that dispute in vain”.
[4] O termo “cardeal”, usado como título honorífico e hierárquico na Igreja, é definido no Le Robert como “capital, essencial, fundamental”. É usado em Matemática e em Geografia (os quatro pontos cardeais) e sendo associado ao termo “Sacro Colégio”, é de uma presunção política impressionante. (Cf. Micro Robert. Dictionnaire Du Français Primordial. Paris: 1984).

segunda-feira, 16 de junho de 2008

Dos Usos da Bíblia na Filosofia Política

Prof. Ms. Isaar Soares de Carvalho
Doutorando em Filosofia -UNICAMP

Meu propósito é fazer algumas considerações sobre alguns dos usos que se fizeram da Bíblia, principalmente por uma área do saber que aparentemente se opõe radicalmente às Escrituras: a Filosofia.

1 - Santo Tomás
Já se viram grandes filósofos utilizando as Escrituras para fundamentar seus argumentos. Comecemos por Santo Tomás (1224-1273), o doutor angélico. Ao tratar dos bons governos, o santo define o rei como aquele “que preside único” e que é um “pastor que busca o bem comum e não o interesse próprio”. (Sobre o Regime dos Príncipes, Trad. de Arlindo V. dos Santos, 1937, p. 19). A comunidade perfeita é governada pelos reis justos, que às vezes, segundo o pensador, são também chamados de pais dos povos, por sua semelhança com o pater famílias. Demonstrando sua preferência pela Monarquia, cita o profeta Ezequiel, que afirma: “O meu servo Davi será rei sobre todos e ele ser-lhes-á, de todos, pastor” (Ez 37,24). Cita também Salomão ao defender o governo de um só: “O rei impera e toda a terra a ele sujeita” (Ec 5,8). Porém, é sua citação do Profeta Jeremias que demonstra de forma mais clara sua preferência pelo governo de um só: “Os muitos pastores arruinaram a minha vinha” (Jr 12,10). Como o rei deve zelar pela paz civil, “perdida a qual perece a utilidade da vida social”, o regime mais útil será aquele que “conservar a unidade da paz”. (Idem, p. 22). Para fundamentar sua tese, cita a Epístola aos Efésios: “Sede solícitos em conservar a unidade do espírito no vínculo da paz”. (Ef 4,3). E logo a seguir argumenta que, como é sabido “que melhor pode realizar unidade o que é de per-si um só”, conseqüentemente, “o governo de um só é mais útil que o de muitos”. (Idem, p. 22). Assim, dos profetas aos livros sapienciais e às Epístolas do Novo Testamento, o doutor angélico procura fundamentar sua defesa da monarquia como a melhor forma de governo.

2 – Thomas Hobbes
O pensador inglês Thomas Hobbes (1588-1679) procurou na Bíblia argumentos para defender a supremacia do poder civil sobre o religioso, tanto na obra intitulada Do Cidadão quanto em sua obra mais citada: Leviatã. Ele argumenta, por exemplo, que Moisés, sendo o portador do poder civil, foi quem ordenou Arão ao sacerdócio.
Outra de suas teses políticas com base bíblica está em sua leitura de uma demonstração de consentimento do povo, através dos anciãos de Israel, com a liderança de Moisés para a saída do Egito e, mais tarde, no pedido de um rei ao último juiz de Israel, o profeta Samuel.
Apesar de uma tradição que vê em Hobbes o pensador do estado absoluto, ele é o pensador da obediência civil e nele se encontram justificativas da origem popular do poder civil, com a tese do consentimento de transferir a uma pessoa soberana o poder e ter assegurada a paz.
Em última instância, como afirma Hobbes em sua epístola dedicatória do Leviatã, como as Escrituras eram as “fortificações avançadas do inimigo, de onde este impugna o poder civil”, sua leitura procurará, ao contrário da Igreja, encontrar na Bíblia os fundamentos da submissão de qualquer poder ao poder civil, visando acabar com um problema que a própria Igreja provocava: a desobediência civil e, por conseqüência, o mais temível de todos os males para uma sociedade: a guerra civil.
Isso ele demonstra muito bem em sua obra da velhice, Behemoth ou o Longo Paramento, na qual via na submissão religiosa e civil ao Papa uma grande fonte de desobediência civil e de discórdia. Por isso, as doutrinas ensinadas, de acordo com ele, não poderiam ser contrárias à paz civil. Visando a preservação da paz, portanto, a Igreja deveria ser submissa ao Estado.
E no cap. XIV do Leviatã, ao tratar da segunda lei de natureza, pela qual o homem deve querer a paz e defender a si mesmo quando julgar necessário, assegurar seu direito a todas as coisas e contentar-se com a mesma liberdade que concede aos outros homens e que estes lhe concedem, o pensador vale-se do Evangelho de Lucas para corroborar sua tese, citando a afirmação de Cristo: “Como quereis que os homens vos façam, assim fazei-o vós também a eles”. (Lc 6,31).
Mais adiante, no cap. XVIII, ao tratar do caráter indivisível do poder soberano e de seu fim principal, que é “a preservação da paz e da justiça”, cita o Evangelho de Marcos, que diz: “um reino dividido em si mesmo não pode manter-se”. (Mc 3,24)

3 - John Locke
O filósofo inglês John Locke (1632-1704) leu as Escrituras argumentando contra as monarquias absolutas. No início do Segundo Tratado sobre o Governo ele afirma que a razão é uma “regra comum e medida que Deus deu aos homens” e que quem comete um assassinato declara guerra contra toda a Humanidade, ficando sujeito à punição de qualquer homem. E para fortalecer seu argumento, cita o Gênesis, que narra que Caim, que assassinara Abel, tinha consciência, pela lei de natureza, de que qualquer que o encontrasse poderia matá-lo, pois ele agiu contra a humanidade.
Outra argumentação que ele faz utilizando as Escrituras está em sua afirmação de que “quando não existe judicatura na terra para resolver as controvérsias entre os homens, o Juiz é Deus nos céus”, bem como quando acrescenta que, “na verdade, ele somente é o juiz do que é direito”. (Segundo Tratado, Cap. XIX, par. 241). Com esse argumento ele nega o direito divino dos reis e afirma, inversamente, o direito à rebelião como divino e, logo, como natural, ditado pela razão. Ao tratar disso, cita o juiz de Israel Jefté, que diante do invasor afirmou: “O Senhor, que é juiz, julgue hoje entre os filhos de Israel e os filhos de Amom” (Jz 11, 27). Isso parece servir de base a Locke para afirmar o juízo, não de Deus, mas do povo, diante dos conquistadores, usurpadores e tiranos.
Ele também encontra nas Escrituras uma narrativa em defesa do direito à resistência. Cita o texto de II Reis 18, que narra que o rei Ezequias rebelou–se contra o domínio do império assírio, onde se afirma: “E o Senhor estava com Ezequias, e este prosperou; por isso foi avante e rebelou-se contra o rei da Assíria, e não o serviu”. Locke afirma que, “embora tenha o nome de rebelião, não constitui ofensa perante Deus, mas é o que ele permite e aprova, mesmo quando promessas de acordos, se obtidos pela força, intervêm”, pois, argumenta, “apesar do título que os reis da Assíria tinham sobre Judá pela espada, Deus auxiliou Ezequias a libertar-se do domínio daquele império conquistador”. (Segunto Tratado, Cap. XVI, par. 196). Locke pretende, ao citar esses textos, afirmar que a desobediência e a resistência são legítimas diante das monarquias absolutas e de seus ideólogos.
De acordo com o Prof. Leonel Mello, “Locke influenciou... os filósofos iluministas franceses, principalmente Voltaire e Montesquieu e, através deles, a Grande Revolução de 1789 e a declaração de direitos do homem e do cidadão. As idéias ´inglesas´... transformaram-se nas idéias ´francesas´ e se difundiram por todo o Ocidente”. (Os Clássicos da Política, p. 89). E conforme Chevallier, Locke chegou a servir de inspiração para a Resistência dos franceses ao totalitarismo nazista. (As Grandes Obras Políticas de Maquiavel a Nossos Dias). E saber que ele usou a Bíblia para corroborar seus argumentos!

4 - Rousseau
Outro pensador que faz uso da Bíblia, a despeito de seu anticlericalismo e de suas amargas críticas aos cristãos no Livro IV do Contrato Social, é Rousseau (1712-1778).
Ele afirma no Livro III da mesma obra: “... Parece natural que os príncipes sempre prefiram a máxima que lhes seja mais imediatamente útil. É o que Samuel expôs vigorosamente aos hebreus...”. Ele referia-se à seguinte advertência de Samuel ao povo que, diante das dificuldades com a sucessão do profeta por seus filhos, pediram-lhe um rei: “Estes serão os direitos do rei que houver de reinar sobre vós: ele tomará os vossos filhos, e os empregará no serviço dos seus carros, e como seus cavaleiros... outros para lavrarem os seus campos... e outros para fabricarem as suas armas de guerra... tomará as vossas filhas... tomará o melhor das vossas lavouras... e os dará aos seus servidores... também tomará os vossos servos... e os vossos melhores jovens... dizimará o vosso rebanho e vós lhe sereis por servos”. (I Sm 8, 11-18).
Dessa forma, verificamos que o mesmo texto que é usado por Hobbes para defender a obediência a um poder absoluto, baseado no consentimento, é visto por Rousseau como uma advertência diante dos perigos das monarquias absolutas. Eis o texto bíblico, pois, sendo usado de formas opostas por dois mestres da Filosofia Política.

5 – Kant
É relevante o fato de que Kant (1724-1804) tenha feito uma paráfrase do Evangelho para argumentar em prol da supremacia da Ética sobre a Razão de Estado, quando diz: “A política diz: ´sede astutos como as serpentes´; a moral acrescenta (como condição limitante): ´e sem maldade como as pombas´”. (“Sobre a discordância entre a Moral e a Política, a propósito da paz perpétua”, In: Immanuel Kant. Textos Seletos, p. 130).
Essa paráfrase que Kant faz do Evangelho coloca a ética cristã acima dos meios comuns autorizados pela Razão de Estado. Em seu pensamento a boa vontade, que é uma virtude exaltada no início do Evangelho de Lucas, está acima da astúcia e da dissimulação e a moral é uma condição limitante da ação política. E sem dúvida essa afirmação, também de sua autoria, constitui-se numa paráfrase do Evangelho: “Procurai primeiramente o reino da razão pura e prática e sua justiça, e então vos será dada por si mesma vossa finalidade (o benefício da paz perpétua)”. (Idem, p. 146).

Conclusão
Mas voltemos à essência das Escrituras. Os rabinos abriam a Torah para ouvirem a Palavra de Deus. Abrir significava, em si mesmo, estar pronto para ouvir. Cristo começou sua pregação em Cafarnaum abrindo o profeta Isaías e o interpretando em relação à sua própria pessoa, afirmando que naquele dia se cumprira a palavra de libertação ali anunciada. E durante todo o seu ministério testemunhou essa profecia e deixou a todos, escribas e iletrados, filósofos e ignorantes, ideólogos ou homens virtuosos, a seguinte orientação: “Examinais as Escrituras, porque julgais ter nelas a vida eterna. E são elas mesmas que testificam de mim”.
William Tyndale (1483-1536), conhecido como o “pai da Bíblia Inglesa”, diante de um sacerdote que afirmou que "seria melhor que ficássemos sem as leis de Deus do que sem as leis do papa", respondeu: “Desafio o papa e todas as suas leis; e se Deus me poupar a vida por muitos anos, levarei um garoto que conduz o arado a conhecer mais a Escritura do que vós”. E também afirmou, noutra ocasião: “Eu havia percebido, por experiência, como seria impossível levar o povo leigo à verdade, a não ser que as Escrituras fossem claramente colocadas diante dos seus olhos na língua mãe”. (Cf. Mary Schultze, William Tyndale, o pai da Bíblia Inglesa: http://solascriptura-tt.org).
Enquanto tantos leram as Escrituras como mero instrumento ideológico e político, esse homem dedicou-se a elas de tal modo que deu por elas e por sua mensagem – a palavra de Deus – a sua própria vida, por crer na vida eterna nelas revelada, Jesus Cristo.

sábado, 3 de maio de 2008

O Reino de Deus e a Obediência Civil em Th. Hobbes

1- Definição de Reino de Deus (Leviathan, Cap. XXXVIII):
“... O Reino de Deus é uma República Civil, em que o próprio Deus é soberano...”.
Sua principal questão, ao discutir o Reino de Deus, era em relação à definição sobre quem daria as ordens, quer por escrito, quer oralmente, as quais deveriam ser obedecidas por todos que pretendiam ser protegidos pelas leis. Isso porque, como ele diz, "as questões de doutrina relativas ao Reino de Deus têm tamanha influência sobre o reino dos homens que só podem ser decididas por quem abaixo de Deus tem o poder soberano”.
Obviamente, isso constituía-se numa oposição ao poder eclesiástico, como se vê no final da Parte I do Leviathan, bem como no cap. XXXIII, quando ele diz: “A questão da autoridade das Escrituras fica reduzida a isto: se os reis cristãos, e as assembléias soberanas das repúblicas cristãs, são absolutos no seu próprio território, imediatamente abaixo de Deus, ou se estão sujeitas a um vigário de Cristo, constituído sobre a Igreja Universal, podendo ser julgados, depostos ou mortos, consoante ele achar conveniente ou necessário para o bem comum”.
A esse argumento Hobbes acrescenta que “quem tiver o poder de tornar lei qualquer escrito terá também o poder de aprovar ou desaprovar sua interpretação”.
Logicamente ele conclui que, como a autoridade civil é quem autoriza o que é canônico e o que se pode ensinar, a instituição eclesiástica deve-lhe obediência, deixando, no caso da Igreja Católica,o seu líder a ser, de fato, “pontifex maximus”, pois nem em religião ele será a autoridade máxima, pois a tolerância religiosa se aproxima.

2 - Quanto às relações entre o Reino de Deus e ao Poder Civil, observa que “a época de sua pregação [de Cristo] é muitas vezes por ele mesmo chamada a Regeneração, o que não é propriamente um reino, nem, portanto, uma licença para negar obediência aos magistrados então existentes (pois ele ordenou-lhes que obedecessem aos que se sentavam na cadeira de Moisés, e que pagassem tributos a César), mas unicamente um adiantamento do Reino de Deus que estava para vir, dado àqueles a quem Deus havia concedido a graça de serem seus discípulos e de nele acreditarem”. Nesse sentido, Hobbes afirma que “dos piedosos se diz estarem já no Reino da Graça, enquanto naturalizados naquele Reino celeste”. (idem)

3 - Hobbes reconhece a Cristo como Salvador, conforme afirma no Leviatã (Cap. XLI: Da missão de nosso abençoado Salvador):“Nossa redenção foi levada a cabo em sua primeira vinda, pelo sacrifício mediante o qual se ofereceu na cruz por nossos pecados”.

4 - Hobbes apresenta Cristo como obediente ao poder civil dos judeus e ao poder do império romano:“... Nada foi feito ou ensinado por Cristo que tenda a diminuir o direito civil dos judeus ou de César”.“Dado que ele nada fez senão procurar provar que era o Messias, pela pregação e pelos milagres, ele nada fez contra a lei dos judeus”.“E também nada fez de contrário às leis de César”.

5 – Hobbes conclui a Parte II do Leviatã: “Da República”, com o Cap. intitulado “Do Reino de Deus por Natureza”, introduzindo o tema do Reino de Deus como poder civil, para depois discuti-lo pormenorizadamente na parte III, intitulada “Da República Cristã”.No cap. citado (XXXI), Hobbes apresenta inicialmente uma síntese das principais teses demonstradas anteriormente, na qual destaca-se a afirmação, já presente no Cap. XXX, de que “os súditos devem aos soberanos simples obediência em todas as coisas nas quais a sua obediência não é incompatível com as leis de Deus”.
Para ele o cidadão deve saber o que são as leis de Deus, para distinguir se o que a lei civil ordena é contrário a essas ou não. Por não ter esse conhecimento, poderá obedecer excessivamente ao poder civil e ofender a Divina Majestade ou, “com receio de ofender a Deus”, transgredir os “mandamentos da república”. Porém, Hobbes parte da premissa de que “o conhecimento de toda lei depende do conhecimento do poder soberano”.

6 – No Cap. XLVI o pensador argumenta contra a inquisição, dizendo que se trata de um erro não aprendido com Aristóteles, Cícero ou qualquer outro “pagão”. A inquisição “consiste em estender o poder da lei, a qual é apenas a regra das ações, até os próprios pensamentos e consciências dos homens”, mesmo que o discurso e a ação desses homens não se contradigam. A inquisição pune os homens que respondem com a verdade de seus pensamentos ou os constrange a mentir, por medo do castigo.
A Igreja, portanto, laborava na mentira e na desobediência tripla: à razão, a Deus, fonte de toda a verdade, e à lei civil, pois se esta permitia a pluralidade de credos, por que a Igreja iria querer controlar as consciências.
O controle exercido sobre as mentalidades pelo Império Romano, que perseguia os cristãos, foi imitado pela Igreja, que perseguiu tanto a cristãos discordantes quanto a não cristãos que laboravam na verdade da razão. Por isso, a Igreja não só usurpou o poder civil através do paulatino controle das consciências, mas tornou-se uma instituição herética, por obrigar quem conhecia a verdade a dizer a mentira.
Hobbes, assim, é um profeta pós-Reforma que, ao mesmo tempo em que defende a obediência civil, defende a obediência a Deus, a qual permite tanto a desobediência às leis quanto ao clero.

7 – Um dos grandes objetivos de Hobbes é demonstrar que a Igreja deve ser submissa ao Poder Civil. Nesse sentido, afirma que as Escrituras, quando seus textos são feitos leis, recebem esse poder da autoridade da República e que particulares não têm permissão de interpretar a lei “pelo seu próprio espírito”, referindo-se, obviamente, à instituição eclesiástica.

8 – Para Hobbes a pregação e o ensino do Evangelho e das Escrituras não deveriam ser restritos aos que são ordenados, mas, argumenta, desde que o estado os permita, podem ser feitos por qualquer cidadão, pois do contrário a Igreja estaria negando uma “liberdade legítima”, isto é, concedida pelo poder civil. Isso deriva, possivelmente, ou ao menos se relaciona, com a doutrina de Lutero sobre o sacerdócio universal de todos os crentes.

9 - É de fundamental importância na argumentação de Hobbes sua definição de lei civil, submetendo toda instituição e todo cidadão ao Estado, salvo a soberania de Deus, conforme já anotamos alhures, isto é, o cidadão não é obrigado a obedecer qualquer lei ou ordem emanada do Estado que se oponha à Palavra de Deus. Hobbes apresenta uma contradição conceitual nesse aspecto, pois a rigor ele considera impossível o conhecimento de Deus através da Filosofia, como deixa claro no De Cive e no De Corpore.
Porém, é possível que ele esteja argumentando contra a própria Igreja, a qual poderia dar ordens aos homens que eram contra a vontade de Deus e contra a verdade. Tanto pela razão é possível desobedecer à Igreja, quando ela obriga os homens a negarem a verdade e a confessarem a mentira e pela fé é possível que se desobedeça tanto ao Estado quanto à própria Igreja, quando esta quer se colocar acima do Estado e, conseqüentemente, das leis civis, e muito mais que isso, presumindo ser a representante de Cristo na terra, usurpa o poder do estado e pretende fazê-lo em relação ao próprio Senhor da Igreja, cujo “Reino não é deste mundo”.

10 - Sobre o Cânon das Sagradas Escrituras (Leviathan, Cap. XXXIII)Hobbes afirma aceitar como canônicos os livros reconhecidos pela autoridade da Igreja Anglicana e diz que entende “por livros das Sagradas Escrituras aqueles que devem ser o Cânone, quer dizer, as regras da vida cristã e que o problema das Escrituras”, e que “o problema das Escrituras é o problema de saber o que é lei, tanto natural quanto civil, para toda a cristandade”.
Hobbes relaciona o termo cânone com as regras da vida civil, afirmando que os livros canônicos das Escrituras ditam as regras da vida cristã. Argumenta que, como as regras da vida que devem ser respeitadas são leis, “o problema das Escrituras é o problema de saber o que é lei, tanto natural quanto civil, para toda a cristandade”.Partindo do princípio de que os soberanos são os únicos legisladores em seu domínio, conclui que os livros canônicos, isto é, que são leis, são estabelecidos pela autoridade soberana.
Ele aceita como canônicos, em relação ao AT, os livros “que a autoridade da Igreja Anglicana ordenou que fossem reconhecidos como tais”.Tal tese é um enfrentamento da Igreja estabelecida, ela que é a guardiã do “Sinai fumegante”, diante do qual ninguém pode se aproximar. Aqui se vê claramente a importância daquilo que Hobbes esclareceu na Dedicatória sobre o uso diferente que faz das Escrituras, mas com a devida autorização, procedente não da Igreja católica, talvez da Anglicana, ou da ideologia a qual pregava, ou ainda de algum membro do poder civil, mas da razão certamente.

11 - Hobbes reconhece a soberania de Deus sobre todos os soberanos, bem como que “quando (Deus) fala a qualquer súdito deve ser obedecido, seja o que for que qualquer potentado terreno ordene em sentido contrário”. Porém, como observa Patricia Springborg, da Bolzano University, quando Hobbes afirma que a autoridade da Escritura procede da pessoa soberana, anula essa autoridade (Hobbes on Religion).

12 - Hobbes põe em dúvida não a obediência a Deus, mas sim quando e o que Ele disse. Como há pessoas que não receberam a revelação sobrenatural, “isso só pode ser conhecido... através da razão normal” e é esta que levou os homens à obediência, visando a paz e a justiça.

13- Por fim, de acordo com R. Tuck, a questão da tolerância religiosa foi objeto de diálogo entre Hobbes (1588-1679) e Locke (1632-1704), que eram contemporâneos, pois, e não tão opostos...

domingo, 13 de abril de 2008

A Fé e o Agnosticismo em Hobbes

1 - Sobre a Fé e a Obediência a Deus na obra Do Cidadão:

A - “Há apenas um Deus”. (Do Cidadão. Trad., Adaptação e Notas de Renato Janine Ribeiro. S. Paulo: Martins Fontes, 1a. ed., p. 309).

B – Ao final da Epistola Dedicatória do Do Cidadão, escreve:“Que o Deus do céu coroe Vossa Senhoria com longa vida nesta estação mortal, e, na Jerusalém celestial, com uma coroa de glória”. (p. 9-10).

C – A obediência a Deus está em primeiro lugar:“...Como devemos obedecer antes a Deus que aos homens...”. (Parte III, Cap. XVIII, p. 359-60). É possível que Hobbes baseie-se em Atos 5, 29 , que diz: “Então Pedro e os demais apóstolos afirmaram: Antes importa obedecer a Deus do que aos homens”.

D – O que é necessário para a salvação:“O propósito dos evangelistas prova que para a salvação é necessário apenas crer num só artigo – que Jesus é o Cristo” (p. 367). É possível que o texto de I Pd 1,9 sirva de base a Hobbes para a citada afirmação: “...Obtendo o fim da vossa fé, a salvação das vossas almas”.

D.1 - Renato Janine Ribeiro observa, na Introdução de Do Cidadão, que muitas discussões e divisões , e mesmo guerras, são feitas em torno de disputas teológicas que não dizem respeito ao essencial: a salvação.

D. 2 - O pensamento de Hobbes, de acordo com o próprio filósofo, não poderia ser declarado herético, pois a doutrina do Leviathan não era contrária ao Credo Niceno. Isso é afirmado na Encyclopaedia Britannica:

"He maintained that since the aboliton of the high court of comission there was no court of heresy to which he was amenable and that in any case nothing was to be declared heresy but what was at variance wiht the Nicene creed, as the doctrine of Leviathan was not". (Vol. XI, 1964, p. 566, verbete Hobbes, Thomas, por G. Wm.)

E - Em relação ao conflito entre a obediência ao príncipe e ao que é necessário para a salvação eterna, Hobbes afirma que o cidadão tanto recai em desobediência injusta ao príncipe quanto pode desobedecer-lhe visando preservar a vida eterna, caso sua ordem seja contrária à salvação. Assim, ele confirmaria a idéia presente no Livro de Atos sobre importar mais obedecer a Deus que aos homens, afirmando: “Seria loucura de nossa parte não preferir morrer de morte natural, em vez de obedecer e morrer eternamente”. (p. 360).

2 - Sobre o agnosticismo de Hobbes em relação a determinados pontos:

A – Ocorrência de Milagres - Do Cidadão: Parte I, Cap. I, p. 31, par. 2: “... Se acontecer que, numa reunião, se passe o tempo contando histórias..., se um conta alguma maravilha, os demais narrarão milagres, se os tiverem, se não tiverem os inventarão”. No Leviathan ele afirma que não ocorrem mais milagres, os quais teriam durado até à época da Igreja Primitiva.

B – Declara ser impossível fazer pactos com Deus, e tanto em Do Cidadão quanto no Leviathan ele é cético quanto aos votos feitos a Deus, mas isso em relação à sua validade do ponto de vista da supremacia da Religião sobre o Soberano (Estado), pois só são válidos os pactos legitimados pelo poder civil, e nesse caso, por força da argumentação, a própria validade do voto feito a Deus terá de ser advinda do Soberano. (Ver: Do Cidadão: Parte I, Cap. II, p. 52-53, par. 12-13, e a nota explicativa de Janine sobre os que faziam votos a Deus e poderiam incitar à desobediência civil).

C – Hobbes é cético em relação ao que os homens falam diretamente a partir de Deus, reduzindo Sua Palavra ao que dizem as Sagradas Escrituras, mas isso, dentro de sua concepção da paz civil, é bem explicado no Leviathan, cap. XXXVI, cujo título é: “Da palavra de Deus e dos profetas”, ver p. 256). No Do Cidadão ele afirma: “Deus não nos fala mais através de Cristo e de seus profetas em voz aberta, mas pelas Sagradas Escrituras, as quais diferentes homens compreendem de modo diferente”. (Idem, p. 360).Segue-se disso, em sua filosofia civil, que o Estado deve interpretar ou delegar a alguém a interpretação que seja de acordo com a consecução da paz civil.

sábado, 12 de abril de 2008

Trechos do Cap. XII do Leviathan: Religião

São afirmações de Thomas Hobbes:
“Verificando que só no homem encontramos sinais, ou frutos da religião, não há motivo para duvidar que a semente da religião se encontra também apenas no homem, e consiste em alguma qualidade peculiar, ou pelo menos em algum grau eminente dessa qualidade, que não se encontra nas outras criaturas vivas...Alguns dos antigos poetas disseram que os deuses foram criados pelo medo dos homens, o que quando aplicado aos deuses (quer dizer, aos muitos deuses dos gentios), é muito verdadeiro. Mas o reconhecimento de um único Deus eterno, infinito e onipotente pode ser derivado do desejo que os homens sentem de conhecer as causas dos corpos naturais, e suas diversas virtudes e operações, mais facilmente que do medo do que possa vir a acontecer-lhes nos tempos vindouros”
Também são afirmações do célebre filósofo:
“... Haverá alguém que não seja capaz de ver para benefício de quem contribuía acreditar-se que um rei só recebe de Cristo sua autoridade no caso de ser coroado por um bispo? Que um rei, se for sacerdote, não pode casar-se? Que se um príncipe nasceu de um casamento legítimo ou não é assunto que deve ser decidido pela autoridade de Roma? Que os súditos podem ser libertos de seu dever de sujeição, se a corte de Roma tiver condenado o rei como herege?... De modo que posso atribuir todas as mudanças de religião no mundo a uma e à mesma causa, isto é, sacerdotes desprezíveis, e isto não apenas entre os católicos, mas até naquela Igreja que mais presumiu de Reforma”.

segunda-feira, 7 de abril de 2008

Estado Hobbesiano

Temos como propósito examinar os textos de Hobbes sobre as relações entre Estado e Religião e discutir sobre a importância dessa temática em seu pensamento. As partes III e IV do Leviathan são as principais para que Hobbes chegue ao seu principal propósito argumentativo, que é o de demonstrar, tanto a partir da Razão, isto é, da Filosofia, quanto das Escrituras, que a instituição eclesiástica deve ser submissa ao poder civil. De acordo com Richard Tuck, da Harvard University, "segundo Hobbes, a área mais importante de potencial intervenção do soberano é a religião" e "faz sentido dizer que são as partes III e IV de Leviatã que constituem o objetivo principal da obra”. (Introdução ao Leviatã, p. XLV-XLVI. S. Paulo: Martins Fontes, 2002).